domingo, 4 de maio de 2008

A Casa e os Champôs (Parte II)


Fomos até à Cidade dos Deuses, a um cabeleireiro luso-brasileiro com o primoroso nome de “Carioca Champô”.
O cabeleireiro de renome situa-se na Travessa Laura Di Euncätzio, nome dado em honra à irmã mais nova de Rwebertan Samiel Di Euncätzio, o Assassino do Amor.
É um sítio particularmente simpático, a travessa. Não está segura de se ver alguns demónios drogados por aí, mas de resto, os únicos que vão cortar o cabelo a este...Artista, são bruxos e bruxas, só gente da minha classe. O Carioca Champô fica precisamente nessa pequena rua, estreita, um pouco escura. Contudo, o cabeleireiro, muito bem escondido no 1º andar dum apartamento cor-de-rosa que tem num poste de Stop o nome da travessa, na porta B.
Ao entrarmos pela esquerda B do 1º andar do apartamento gasto, recebeu-nos um bruxo alto, de cabelos pretos espetados, colete de cabedal igualmente preto e calças roxas de ganga. Fumava um cigarro por entre a boca de feixe éclair, e tinha o estranho hábito de esfregar as mãos pálidas sob as tesouras afiadas. Assustou-me um pouco, com aquele olhar vermelho de sangue, mais parecia ser um serial killer do que um cabeleireiro.
Cá para mim ele não batia bem da bola.
Fiquei positivamente espantada quando este se me dirigiu de forma completamente cavalheira e um pouco efeminada, num sotaque brasileiro e voz suave:
- Oi, senhorita!
Eu apenas murmurei um tímido e desconfiado “Olá” para ele. Parecia um indivíduo extremamente excêntrico e nada aparafusado da cabeça.
A seguir, olhou com um ar cúmplice durante algum tempo para Nälden. O alemão retribui-lhe o sorriso amarelo, e, após cinco minutos, o tenente sorriu para mim.
Com a mão por cima do meu ombro fraternalmente, este apresentou-me ao sinistro bruxo que parecia ter trinta anos.
- Ilnerto, esta é a Menina Jessica, quer fazer um novo corte para deslumbrar esta noite no Anel da Serpente. – Disse o tenente com um sorriso divertido. – Trata bem dela, está bem. Ela é prima do Sr. Duque Von Tifon.
Dito isto, o advogado e tenente alemão entregou-me de ânimo leve às manápulas magras de Ilnerto Silves, o Cabeleireiro chefe do estabelecimento, que, por acaso, não era assim tão grande como eu esperava.
A sala de espera um apertado corredor com várias cadeiras dispostas em fila à direita, terminando num pequeno espaço onde o recepcionista e caixa, de cabelos ruivos à punk, com a mesma indumentária de Ilnerto, e com um pircing colado à boca, mascava indiferentemente uma pastilha que já devia ter uns dois dias no mínimo.
Olhei o palerma do Silves com um ar meio atarantado e nervoso, com as mãos nas ancas e o salto alto a bater no chão, como prova da minha irritação por parte das suas manias.
- Não há espiga. – Disse, dando-lhe com muita força a minha mão. – Eu fico bem.
Acompanhada pela mão de Ilnerto, dirigi-me rapidamente para a sala à direita onde eram feitos e refeitos os penteados de várias bruxas. Desta vez, era uma sala espaçosa, rectangular, onde cinco cabeleireiros se ocupavam das rabugentas clientes.
Podia ser larga, mas as janelas estavam encortinadas dum roxo de fazer clamar ao quinto dos Infernos!
A decoração era do mais nauseante que eu alguma vez tinha visto em toda a minha vida!
Enfim!
Normalmente, costumo pensar em outras coisas e só depois é que vejo se o meu cabelo está bom para ir para a festa. Corei um pouco ao finalmente me aperceber que ainda estava de roupão! Oh, por Tsesustan! Deve ter sido por isso que Ilnerto olhou para mim como se eu fosse uma pega.
Ofereceu-me um catálogo cheio de estilos e cabeleiras e cores de cabelo muito variadas, desde os cortes curtos até as colorações mais bizarras que eu tinha visto em toda a minha vida. Disse-me que se iria ocupar pessoalmente “desses lindos caracóis louros, que até parecem feitos de ouro”. É verdade que eu tenho o cabelo louro, mas prefiro pintá-lo de ruivo, para disfarçar o facto de que sou uma Von Tifon. O geral é uma pessoa dizer mal desta família, mas os rumores na classe dos Bruxos são como o pão-nosso-de-cada-dia. Eu nunca presto atenção ao aspecto do cabeleireiro, ou a aparência e forma de falar e como o dono do estabelecimento se comporta diante dos clientes.
Prefiro estar atenta ao meu cabelo louro encaracolado, ao meu lindo e longo cabelo dourado.
Estava a desfolhar desinteressadamente as folhas cortantes do grosso catálogo, quando escutei uma voz ondulada e duma mulher sensual, com um sotaque londrino, muito madura, a cantar uma melodia em Português Brasileiro.
Era uma das canções preferidas que a minha mãe costumava cantar, era cheia de alegria e vitalidade, no entanto, eu estava a tremer de medo por dentro!
Aquela história dramática da minha mãe mais parecia uma versão alemã da ópera da grande Cármen, cuja renunciou ao amor e que este a matou furiosamente.
Aquele dia estava a ser mais imprevisível do que o próprio Assassino do Amor!?...
Um pouco a medo, olhei para o corte onde aparecia Katharina com um ar bastante elegante e fascinante, para uma mulher na casa dos trinta.
Era um corte mesmo «…engraçadíssimo…» como diria o Tenente Nälden, com um pequeno rabo-de-cavalo preso por laca encaracolado com uma repa para a esquerda que dava-me uma sensação maternal de conforto.
- Sim… – Murmurei com um ar decidido. Depois, com um sorriso, olhei docemente para o querido Ilnerto. – Quero este.
- Ai, senhorita! – Suspirou ele romanticamente. – ‘Ocê não sabe que esse foi o mesmo penteado que a Dona Duquesa levou para o casamento? Foi lindo aquele matrimónio: os noivos atravessando o portal do amor, sendo cumprimentados por uma salva de pó de pérolas, aquele sortudo cyborg checo Thomas Migntetiyte de uniforme…
- Espera aí! – Interrompi, curiosa. – O senhor disse checo?
Ilnerto limitou-se a pedir-me licença para que encostasse cuidadosamente a minha cabeça na fenda feita do lavatório para encaixar com o pescoço, e continuou a tagarelar como se fosse uma gralha, à medida que regulava a temperatura da água.
- Claro que falei, menina! – Respondeu ele, num tom convencido. – Era assim que o príncipe se chamava, um astro de guerra, se é que me está a entendendo. Um herói, era o que esse burro que só nas nuvens se dava bem.
- Ah, bom… – Comentei resignada. – É que o Sr. Duque Von Tifon contou-me que ele era escocês…
- Nada disso, paixão! – Disse Ilnerto convicto. – O soldado e antigo príncipe era checo, até se diz que ele era descendente do Rei Venceslau IV, governador da Checoslováquia.
- E mesmo assim participou na frente? – Perguntei espantada enquanto sentia o meu cabelo a ser passado e esfregado com champô. – Que homem corajoso! Portanto, ele era piloto de aviões durante a Segunda Guerra Mundial?
Estava para ver se haveria mais uma história acerca do meu Padrasto. A pouco e a pouco, a galinha enche o papo, e eu estava cada vez mais perto na peugada dele.
Ao conduzir-me para o toucador e secar-me qual gentileza duma pequena ovelha, o cabeleireiro, um pouco nervoso, continuou a sua narrativa mal me viu sentada diante do espelho.
- Exacto, meu amorzinho. – A sua voz tornava-se cada vez mais receosa. – O Conde Migntetiyte era um homem íntegro, piloto de bombardeiros e corajoso em cada situação.
Soltei um baixo desabafo, quase como se estivesse ansiosa por ver como é que estaria logo à noite. Olhei a seguir para a fotografia dos “Benfeitores do Champô Carioca no último Dia da Magia Negra, em 1938”. Estavam todos os cinco vestidos a preceito, como se fossem mesmo para o Dia das Bruxas, numa das varandas do Château. Da direita para a esquerda, estava a minha mãe, Katharina, com o cabelo pintado de vermelho, alisado e curto a dar-lhe pelos ombros e um vestido preto esfarrapado a propósito, com os olhos azuis a brilharem com o seu sorriso traquinas por detrás dos lábios sensuais dela. Usava sapatos de salto vermelhos de sangue a condizer com a maquilhagem berrante de vampira e os dentes postiços, com uma vassoura de bruxa, com uma perna verde pintada, a segurar-se pelas grades da varanda. Estava super bonita! Esperava estar à altura dela no meu primeiro Dia da Magia Negra. A seguir, estava o meu avô Adrian Friedrich Von Tifon com um ar brincalhão, com uma pala de cristal negra em vez do monóculo no olho direito, vestido com roupas garridas do século dezassete, com um ar imponente, a cara coberta de pó-de-arroz e uma verruga falsa para combinar com a maquilhagem requintada que tinha na cara. Com um ar muito sério, mas que não devia ser levado a sério, ele brandia um gancho no braço direito, tentando fazer um desajeito olhar ameaçador. Quase que desatava a rir às gargalhadas, era a imitação do Capitão Gancho!
A seguir, estava um homem cujas legendas dizia, como sendo R. H, vestido ao fantasma da ópera, olhando com um sorriso traiçoeiro a câmara. O Rei dos Bruxos estava no meio, com o seu melhor casaco de pele de urso, fingindo ser um gangster famoso, com uma mala apropriada para um violino no braço, tentando fazer parecer que estava ali uma arma escondida. Por fim, estava um sócio do meu avô Adrian, envergando roupas escuras e castanhos-escuros, com um chapéu de coco, e um saco na mão direita, fingindo ser o Bicho Papão, nada convincente.Era engraçado haver uma só mulher no meio de tantos homens, até se pensava outra coisa, mas enfim…Os tempos eram outros.