domingo, 24 de agosto de 2008

Dia da Magia Negra em Cyborg Town (parte I)


As luzes das lâmpadas, ténues e enfraquecidas pelo nevoeiro, pousadas de dez em dez metros seguidamente no jardim que separava o caminho do metro do dos carros, plantado com bonitas árvores de cerejeira, iluminavam a bifurcação e o grande palácio do Cavalheiro e da estação de metro, mesmo atrás do Anel da Serpente, que era o edifício por onde eu tinha saído.
De resto, só restava como companhia a escuridão das esquinas e travessas labirínticas e apertadas pelos grandes edifícios negros da velha cidade cosmopolita, com alguns datados do século dezoito, que, certamente, faziam contraste com o gigante moderno governado pela SPV. No canto direito do ringue, havia também o Quartel-General da nova rival da centenária Serpentis Politza Vigitz: os SOS, ou, os Serviços Obscuros de Segurança, como são chamados ironicamente, fundados em ’95 pelo General B. Cá para mim, apreciar a diferença entre a antiga Faculdade de Letras atlante e o Hotel Anel é como distinguir um shot moranguito de aguardente: têm os seus nomes próprios, mas o sabor e a sensação duma enorme ressaca e prováveis vómitos é semelhante.
No entanto, é fácil perceber que, ao conseguir este palácio barroco – a velha faculdade que servia anteriormente para ensinar humanidades, línguas e letras – o General B ficou muito bem servido. Talvez até bem mais servido que o seu novo patrão, o Goldtheeth, que ocupava agora os sete andares abaixo do chão do Anel da Serpente. Não havia dúvidas que o hotel centenário, agora intitulado pelo povinho como Casa SPV, era maior que o Palácio Eleonora (eles aqui têm uma estranha mania de adorar a realeza, não achas?); porém, à semelhança das pizas, o gosto é raramente uma questão de tamanho ou melhor massa.
Lá ao fundo, no caminho à esquerda depois do imponente Teatro Parisiense, havia uma antiga auto-estrada que se dirigia para Sudoeste, para a Cidade dos Deuses. Enquanto que, à direita, se estendem, por vezes, alguns bruxos a caírem de bêbados, a meio da noite.
Essa estrada, sinuosa e rodeada de árvores frondosas – tão altas quanto o próprio arranha-céus que se destacava na avenida pelos seus 600 metros de altura – tem um desvio que dá para o sinistro Vale da Morte, e também para o Castelo Negro.
Aqueles pinheiros bravos emanavam já de si uma certa aura infernal, quanto mais o próprio terreno acidentado a dois quilómetros de distância ao olho nu dum bruxo.
Apenas a Lua Cheia alumiava o céu escuro, coberto por ameaçadoras e tristes nuvens azuis-escuras.
Kalixt já ia andando, a descer apressadamente as escadas bem polidas qual porcelana fabricada na Marinha Grande da entrada do edifício, mal disposto por ter falhado a sua missão, com as mãos retorcidas qual lobo submisso que põe a cauda para baixo, com receio que o seu senhor o punisse por tão humilhante fracasso, quando viu uma grande máquina preta à sua espera, aliás, a porta sinistra do longo veículo abriu lentamente, como se a própria e temida Morte estivesse à espera do Bruxo do Fumo, para o engolir num sono eterno!
O espesso e denso nevoeiro, qual gás prateado sonífero fazia com que as pessoas, principalmente as Fadas, os Deuses, e os Feiticeiros Brancos adormecessem à medida que a noite sem estrelas caía suavemente debaixo das suas insuspeitas cabeças. Era quase impossível ver um palmo com o tempo assim tão confuso, porém o bruxo sabia muito bem por onde ia. Que planos ele estaria a tramar…?
Este encanto prodigioso era naturalmente provocado pela atmosfera de magia negra do feriado, mas havia algo mais que pairava no ar. Mas o quê é que eu não conseguia perceber. Espreitei discretamente pela janela, para ver o que se estava a passar.
Utilizando os meus poderes, consegui ver o que se passava no carro.
O bruxo conversava sozinho, parecendo bastante arrepiado e desconfortável…?
As suas mãos suavam constantemente, como se falasse com o próprio Diabo, e desta vez, não era ele quem estava a fumar, mas sim o seu patrão – o padrinho dos Bruxos, talvez – numa boquilha mais arrepiante do que a do seu servo, com um fumo mais tóxico, outra ouvi uma voz vinda do Além, dum homem vestido com preto deitado numa cama especial negra de cabedal arranjada no luxuoso automóvel, qual rajá perto das suas odaliscas, ou melhor dizendo, perto do motorista que conduzia e do ganancioso bruxo do fumo. A sua voz soou-me tão gélida – decerto que seria o General B, reconheceria aquela voz metálica e aguda em qualquer lado – quanto um movimento dum perigoso glaciar, e sua dicção ameaçadora ponha-me os cabelos em pé:
- Não faz mal, você fez o que pude para ganhar a confiança da Fräulein Jessica. Arranjarei maneiras de o recompensar, e pode ter a certeza que serão generosas.
O ignóbil servo acenou apressadamente com a cabeça, trémulo e esboçando os dentes amarelos e podres qual hiena horrorosa que era, estendeu a mão ansioso.
- Sim, meu senhor! – Exclamou ele impaciente. – Agora…Voltando aos mil marks que o senhor me deve de salário atrasado…Não podia dar-mos aqui mesmo? Vá lá, pastéis verdes é o que não falta a Vossa Excelência…Eh, eh, eh, eh…
O dono do carro soprou propositadamente uma espessa nuvem de fumo azul-escuro mesmo à cara do outro bruxo. Pensando bem, até aposto que aqueles três eram de um sindicato de criminosos alemães qualquer que tinha vindo fazer uma “visita turística” para fazer um servicinho a um cliente que não lhes agradava nada. E o de voz de trovão com eco gelado seria o chefe. O manda-chuva, estás a entender?
Era o mais discreto, e o fumo misturado com a neblina era surpreendente doce e muito forte, qual…óregãos misturados com hortelã-pimenta.
- Paciência, meu útil escudeiro. – Interrompeu o de voz arrepiante. – Com o câmbio monetário e o passar dos anos esqueci-me completamente…
Subitamente, a feia carantonha quadrada do bruxo perdeu o seu característico sorriso sádico e funesto do costume e foi substituída
- Mas…Senhor, Vossa Excelência sabe muito bem que não tenho dinheiro nenhum para pagar a Liberdade Condicional. Os rapazes israelitas do Palácio das Reuniões já estão a desconfiar de eu estar a ser tão lindo menino e por ter pagado com as minhas despesas o seu bilhete para ir ter com as suas meninas sem que uma data de fadas lhe venha fazer a vida negra! – Explicou-se com ar preocupado.
Misterioso e cruel, o chefe da quadrilha soltou uma gargalhada sarcástica qual bode novo acabando por terminar uma batalha, refastelado no sofá, fumando satisfatoriamente o seu cigarrito “ocasional” preso pela boquilha como se nada fosse, e, ao estalar os dedos, para depois o frio motorista fazer levitar um saco de couro verdadeiro, a tilintar de moedas sonantes, eram tantas quanto o milho, e, pousaram no colo do homem, que logo as fez balançar num movimento como se fosse um pêndulo à frente do bruxo desesperado.
- O que são dois mil euros entre amigos, não é verdade? – Comentou cinicamente, rindo-se ao ver o quão desesperado o outro estava. – Não fique com essa expressão, o dinheiro não é tudo.
O outro bruxo começou a contar minuciosamente as moedas no saco com as suas mãos pequenas e afiadas, qual garras nojentas e amanteigadas de energia mágica pastosa de mulheres demónio, para caso o diabo viesse a tecê-las. Tinha razão, não ficando contente com a quantia, atirou a massa para fora do carro com as suas mãos oleosas.
- 500 Marks?! – Perguntou abismado. – Onde está o resto? Há trinta anos tínhamos combinado que se eu lhe safasse de todos os problemas públicos e privados acerca daquela coisa-horrível-que-não-se-deve-pronunciar-senão-morremos-todos, me daria mil marcos em moedas, e o que é que eu vejo? Metade! Metade das minhas poupanças para os meus filhos!
O da voz arrepiante apenas pôs as luvas ensanguentadas de cabedal áspero nas costas do outro, dando vigorosas palmadinhas nos ombros como forma de camaradagem, e soprou qual cobra cuspideira uma estranha seta de fumo que indicava para o arranha-céus. Havia algo de inquietante naquele bruxo que não inspirava confiança a nenhum dos outros dois, subordinados pessoais, mais novos que o chefão.
E, sinceramente, digo-te que eu também não gostei lá muito do ar arrogante e cínico dele quando o ouvi e vi, pelo menos a sua silhueta (estava tão escuro que nem dava para ver a cara). Aquilo cheirava muito mal, e posso-te dizer que não era do fumo do tabaco que os dois do bancos de trás inalavam, mas sim que havia qualquer tramóia ou conspiração contra a Atlântida, eu sentia-o nos meus braços com pele de galinha
- Digamos que os outros quinhentos marks só serão devolvidos quando você terminar uma… “tarefa facílima” que foi concebida especialmente para si. – Indagou o chefe dos três bruxos, fumando mais um pouco. – Seja complacente, em breve, daqui exactamente a quatro meses, terá o seu dinheiro de volta. Já para não falar nos extras que lhe darei finda a tarefa.
Estalando novamente os dedos, dirigiu-se para o motorista que estava nos lugares da frente, e apontou a boquilha negra a arder qual ponto de referência azul assustador para o próximo destino.
- Walter, podes ter a gentileza de acompanhar o nosso “convidado” até minha casa? – Ordenou o frio e estranho bruxo. – Certamente que ele deve estar exausto depois deste grande dia. Já agora, abre-me a porta para eu poder entrar neste edifício…
O bruxo do meio, espantado, apontou com um olhar vazio para o Anel da Serpente.
- Senhor, não quero ser mal-educado, nem desrespeitar a sua autoridade, mas esse hotel, a partir da meia-noite só recebe o General B ou o Capitão-mor. Com essas excepções, só mesmo o Presidente do PR é que pode entrar lá. Além disso, Vossa Excelência ainda está muito fraco para poder revelar-se....
Mas era tarde demais para outras conversas, e mal o bruxo do Fumo Sinistro ia acabar a frase, já o tal “Walter” pregara a fundo e deixara o seu amo a passear por entre a neblina, e desapareceu por completo, tal como o seu carro negro, deixando ambos um rasto de inúmeras perguntas, das quais o grau de dificuldade para mim era areia a mais para o camião. De que estariam eles a falar…? Com certeza o dinheiro envolvido era a maneira de ambos negociarem os termos para conseguirem os seus objectivos…E teria aquele bruxo alguma coisa a ver com o meu padrasto…?