sábado, 29 de janeiro de 2011

Mais um dia...Sem Sara

Ninguém se lembrava de a ver tão bem-disposta de manhã, ainda a dançar com o ritmo da noite louca de Cyborg Town, enquanto se servia de um grande pedaço de bacon com ovo estrelado e salsichas alemãs gigantes molhadas em sangue de demónio com hortelã-pimenta e maionese.

Ela estava a cantarolar “Shoo, Shoo, Shoo baby”, enquanto punha os chinelinhos cor-de-rosa com laçarotes brancos às pintas verdes. Usava um roupão de noite com uma golinha verde-clara, enquanto o vestido mostrava a maior parte do seu corpo avantajado.

Nälden, que acabava de fumar um “Stella Marx” de morango e tabaco amargo com a sua cigarrilha, pôs um pouco de queijo nas orelhas, ao tirar um pouco de marmelada para pôr na sua sanduíche nutritiva de soja, atum e salada, olhou para ela um pouco admirado.

- Eh lá, Fräulein Katharina! – Exclamou ele, na sua vozinha efeminada, envergando um elegante fato castanho-escuro. – A menina vai arruinar completamente essa linha de deusa se continuar a comer dessa maneira!

A minha mãe, que não estava para meias medidas, arrancou um enorme pedaço do que havia de melhor da mesa comprida, decorada com uma toalha branca com águias douradas nas pontas e olhou para o coitado do advogado da família com um olhar de leoa esfaimada.

- E o que é que isso te interessa, ó flamingo escanzelado? – Resmungou ela, numa voz irritada, enquanto dava uma trincadela na salsicha. – O meu nutricionista disse que eu preciso de comer seiscentos e sessenta e seis quilos de carne por dia!

O Nälden nem disse palavra e continuou a beber com a palhinha o seu batido de leite com hortelã-pimenta.

- Já estou mesmo a ver que é preferível ouvir uma estação de rádio decente do que aturar as suas maravilhosas cantorias, tia. – Comentou o Primo Coutinho, ao mexer nos botões do rádio que estava na cozinha. E, apesar de ainda ter o seu strudel por comer, juntamente com uma cerveja da Baviera bem gelada, o meu primo, apenas com uns boxers azuis-escuros, continuou a procurar uma estação alemã. – Quero saber como é que está a Alemanha.

- Para que é que tu queres saber sobre a Alemanha, sobrinho? – Charlotte, a minha tia apareceu na cozinha, ainda sem o rabo-de-cavalo, com o cabelo encaracolado, negro e todo despenteado. Ela usava um robe roxo de veludo com um falcão dourado a segurar três fogos-fátuos, o símbolo da família.

A minha tia bocejou um pouco, enquanto começava por aquecer o seu leite pela caneca.

- Bom dia a todos…

Nälden e Couto disseram os bons dias, um pouco ocupados com as suas próprias coisas. O meu primo muitíssimo atento ao programa “Guten Morgen, Berlin” que estava a dar na rádio, nem sequer tocava na comida.

A luz da manhã entrava subtilmente naquele dia de Verão.

A minha mãe, como sempre, decidiu fazer pouco da minha tia, enquanto penteava o cabelo louro com as mãos compridas e longas. Deitou um olhar venenoso à irmã e perguntou, num tom trocista, inclinando-se sobre a mesa:

- Só acordaste agora, irmãzinha? – A voz da minha mãe estava mais mordaz do que o costume. Enfim, uma bruxa grávida não é problema nenhum para a nossa família. – O que é que estiveste a fazer ontem à noite? A fazer um assado de demónio?

A minha tia, que pelos vistos, também não era nenhuma santa, corou como se fosse um tomate e respondeu, um pouco aborrecida:

- Não tens nada a ver com isso, Katharina!

Havia algo muito esquisito no rosto da minha tia. Parecia que ela também tinha andado a fazer as suas traquinices durante a noite. Quanto ao meu primo Willem Couto von Tifon, esse permanecia com um ar preocupado, a ouvir as últimas que a rádio tinha para contar.

Com só quatro pessoas na cozinha – a maior parte dos criados se tinham ido embora, uma vez que eram todos de origem eslava – não se ouvia nem uma única mosca.

O palácio parecia estar desabitado, e, verdade seja dita, se eu estivesse a viver numa altura daquelas, talvez achasse que faltava algo muito importante lá…algo como um carinho familiar.

A pessoa que mais notava isso era, surpreendentemente, o mordomo e amigo inseparável do meu primo.

- O Château está tão silencioso sem a Fräulein Sara por aqui… - Repentinamente disse o mordomo da família, ao começar por acender outro cigarro. Continuava a comer, como se não fosse nada, o seu pequeno-almoço.

- E é bom que continue assim! – Respondeu Katharina, mal-humorada, que mal ouvia o nome da prima começava logo a ficar com ciúmes. – Aquela mestiça amestrada não faz cá falta nenhuma!

- Isso não é verdade, Katharina. – Disse Coutinho, finalmente sentando-se à mesa, com as sobrancelhas carregadas, pondo o guardanapo no colo. – A Sara tem sempre um lugar especial nos nossos corações. Mas se este sítio lhe traz más memórias, então é bom que ela vá descansar no Palácio das Reuniões.

Com um tom de raiva nos olhos, o meu primo continuou a remexer no bacon.

- Não consigo comer depois daquilo que disseram na rádio. Dizem que oficialmente, não há provas nenhumas que Heinrich Himmler ou Heydrich possam estar vivos! – A seguir, ouviu-se o esmagar furioso dos talheres contra o prato. O meu primo falava entre dentes enquanto os olhos dele tornavam-se vermelhos. – Como…?! COMO é que é possível que os Alemães possam ter sido tão CEGOS! Ai, mas se não fosse pelo escândalo, eu…

O meu primo estava quase a levantar-se quando escutou-se, sabe-se lá de onde, um ligeiro ronronar, quase assustado. Spiegel, o outrora gordo gato mágico da família von Tifon, tremia como varas verdes, escondido debaixo de uma das pernas de mogno escuro da mesa.

Estava muito magro, e o seu pelo, branquinho e quase tão fofo como lã, tinha caído quase todo. Segundo Charlotte, ele tinha passado aqueles anos todos a alimentar-se dos pássaros e dos perús que por vezes por ali andavam no jardim. Ou outras vezes, atacava a despensa do palácio, num andar abaixo do rés-do-chão: a cave.

Os olhos azuis, remelados do grande gato persa olhavam para os olhos piedosos do meu primo.

A cauda estava hirta, e cheio de medo, o gato quase que arranhou o meu primo, se não fosse o cheiro a cerveja e a óleo de máquina que o meu primo sempre trazia de quando andava de avião.

Cheirando um pouco mais com o focinho cor-de-rosa, o gato ronronou um pouco mais, até que o dono pegasse nele e desse umas gentis e leves carícias na cabeça.

- Oh, coitadinho do meu menino! O Spiegel teve saudades do Papá Coutinho? – Enquanto o meu primo dava festas ao seu animal de estimação preferido, a minha mãe começou a ficar verde de repulsa, com a mão na boca.

- Oh, por amor de Todos os Deuses, LARGA essa coisa imediatamente! – As palavras “coisa” e “larga” tinham sido pronunciadas como se fossem sibilos de uma serpente raivosa. A cara da minha mãe já estava toda vermelha por causa das alergias. – Queres pôr-me a vomitar, é isso?!

Agarrando no corpo frágil do pobre animal, o meu primo foi buscar um pouco de leite e atum em lata. Com uma precisão cirúrgica, abriu a lata, e pôs a comida numa taça especial de cristal que tinha, gravado, em ouro, a inicial S.

Enquanto tirava de uma das prateleiras uma taça de cristal, desta vez com um desenho em prata de um gato a beber leite e as iniciais “V. T. “ na base, o primo olhou com um ar reprovador para a minha mãe, que, apesar de tudo, era muito mais nova que ele.

- Não diga isso, tia, senão ele ainda fica ofendido! – Respondeu ele, ao chamar com o dedo mindinho, o gato, que, cheio de fome correu que nem um tigre em direcção ao alvo. – Lindo menino!

- É… - A minha mãe, ainda com a camisinha de noite transparente, cruzou os braços num tom irónico, ao acabar a refeição, com um ar de quem ainda estava com fome. – Bastava uns poucos centímetros a mais e o “lindo menino” até se parecia com o Tigre da Escuridão! Essa bola de pelo vai arruinar-nos!

Mas a minha mãe ainda não tinha terminado com o sermão. Apontando com as garras para a tal “bola de pelo”, ela acrescentou, num tom convicto:

- E depois não vou ser eu quem vai pagar as latas de atum!