terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A Vida de uma Caixa de flores de Miosótis


Era uma caixa igual a todas as outras. Ninguém sabia como nem porquê que é ela, uma caixa tão singela, tinha vindo parar às mãos de um antigo coleccionador. E não digo que ela não gostasse. Talvez fosse por que ele a olhava com tanta curiosidade, que chegava a ser aflitivo. A caixa era feita de porcelana e das melhores! No entanto, só tinha custado ao homem uma moeda de cobre, que nessa altura era muito pouco para um feiticeiro como ele. A chuva caía, caía, enquanto a caixa, muda - tal como todos os objectos - era observada pelos olhos claros do seu novo dono.
Tinha uma certa graça, olhar para aquelas florzinhas cor de cobalto cujo pólen tinha sido pintado com a cor doce do mel. Apenas tinha sido moldada assim: com a forma de uma típica caixa de jóias, com folhas da cor da oliveira e miosótis a decorar uma caixa que para além do fio de ouro, não tinha lá muito de valioso. Tinha medo de se partir, porque era como uma mulher jovem e delicada. Havia uma espécie de finura no seu comportamento, sempre quieto e silencioso. Quem quer que a tivesse feito, devia ter sido com muito amor! Quando se abria, era como se houvesse um chilrear alegre quando alguém lhe tirava a tampa.
E de facto, a sua história é ainda mais curiosa quando contada, assim, a meio da noite, quando a chuva respinga nas vidraças das janelas. Estava um pouco gasta, mas não era por isso que não era bonita. Gostava de ser assim - simples, como se acabasse de ter chegado da furnaça onde a forma do vidro se torna tão rígido quanto (perdoa-me a expressão) o peito de uma mulher desenvolvida. Oh, como os Humanos outrora lhe tinham dado valor....tinham-lhe chamado preciosidade, relíquia, tesouro...Naquele momento, ao ser observada pelo dono, era só uma caixa. Portanto, achou que não tinha nada a perder a ser vendida a um feiticeiro de um estatuto tão alto como aquele bruxo. Ela já devia ter mais de cem anos, e já tinha estado em casa de muita gente. E por isso mesmo, era humilde. Já tinha experiência suficiente para saber que jamais podia sonhar tão alto como aquilo.
Enquanto o homem olhava para ela, ela também ficava curiosa. Quem seria ele? Parecia ser um homem de bem, de modos que não ficou amedrontada. Tinham-se passado dez anos dez anos depois da guerra dos Japoneses contra os Russos, e depois de tantas pilhagens, assaltos à mão armada, violações, gritos estridentes de mulheres aterrorizadas, bebés a chorarem pelas mães, a caixa sentia-se bem por ter um pouco de paz. Viva da costa, ela estava ali, ao perto de um armário de madeira de cerejeira Japonesa e de um vaso do Sul Bellante.
O bruxo chamava-se Alexei e tocava muito bem um instrumento ao qual ele chamava de alaúde. Ou pelo menos era isso o que ela apanhasse, não fosse ela porcelana feita à maneira Portuguesa. Enfim, aquela simplicidade intrigava-o bastante. Embora ela não fosse de marca, parecia ter sido feita com todo o esmero de quem é apaixonado pelo trabalho, pincelando as florezinhas, aquelas adoráveis e graciosas miosótis, com todo o cuidado e talento.
Aquela problemática guerra tinha-o feito num Kolmanatry. Mesmo assim, dinheiro não lhe faltava, e isso via-se nos seus cabelos cor de prata, fios que nem seda. Os seus olhos azuis cor de safira olhavam, como se estivessem a examinar um complicado cálculo matemático, ou uma tese qualquer de Descartes, a caixa de porcelana. E aquele objecto, que era tão simples, no entanto, tão belo, não deixava de o impressionar.
Para ela, ela estava muito bem assim. Não precisava de enfeites nenhuns nem de restauro ao mais infimo pormenor. Por isso mesmo ela ficava pasmada com tamanha curiosidade! Que teria ela de tão especial? Ela, cujo fio de ouro era uma mera camada de óleo, não achava em si digna de tanto olhar e de tanto cismo filosófico. E quem não diz que ela era merecedora de tanto elogio e cumprimento? Só acho que, por debaixo de tamanha admiração havia aquele bichinho que todos os génios - sejam eles filósofos, artistas ou artífices - têm. Era como diz o famoso provérbio: "Na necessidade prova-se a amizade..." Neste caso, foi muito mais do que uma necessidade, foi aquele tipo de encontro fortuito que só se encontra nos contos de fadas.
Mas isto, isto aconteceu assim mesmo: com a chuva a cair nas janelas do apartamento do velho e experiente Kolmanatry, e ele a ver a bonita caixa de miosótis Portuguesa. Era um desejo de querer saber de onde é que ela vinha e porquê é que era assim...tão bonita, e tão frágil na sua maneira de ser.
Dela, vinha um ligeiro perfume a baunilha. Imaginem um velho, muito velho, que, ou por uma ligeira brisa de inspiração, ou porque não mais nada que fazer, decidiu moldar em porcelana, uma caixa com a forma de uma fechadura com seis cantos, rectangular e engraçada. E com esta forma, ele pincelou uns miosótis graciosos, mas simples no seu desenho. Uma fita de ouro na tampa completava os lados amarelos, verdes e cobalto.
Parecia ter sido feita para crianças, embora não houvesse muito segredo nisso. E Alexei, que para além de filósofo e de artista, conhecia muito os vidraceiros, sentiu um pouco de nostalgia ao acariciar a caixa de porcelana com as mãos enrugadas.
- De todos os objectos que estão aqui, és o que mais me fascina. Porque serás assim? - Perguntou ele, no seu sotaque eslavo.
A caixa não respondeu, mas via-se perfeitamente que tinha corado, num gesto puramente de quem ficava muito admirado de tal louvor. O velho armário de cerejeira Japonês quase parecia ficar um pouco incomodado. Aquela caixa, tão colorida, não era feita da mesma matéria prima que a sua, e guardava coisas muito mais femininas do que aqueles que ele guardava. Contrastava profundamente com a sua velha cor desgastada e preta. No seu interior, ele ocultava antigas espadas, espólios de guerra que Alexei tinha decidido mexer desde que esta terminara.
O vaso do Sul bellante, por seu lado, tinha sido pintado com um enorme jaguar preto, e era feito de argila da cor do sangue. Tinha mais de trezentos anos. De toda a mobília com quem a pequena caixa se dava, era ele quem ela mais respeitava. E apesar de se conhecerem há muito pouco, ela gostava muito dele.
Perto do apartamento de Alexei, havia um entulho de folhas, quase gastas por causa do vento que prenunciava o Inverno, dançava ao som das mariposas que eram as donzelas que passavam, de longos cabelos dourados, na rua onde o filósofo vivia. Que pequeno delírio tinha feito o velho artista a ter escolhido, de todos os objectos que estavam naquela feira humilde e sem graça, a ela a quem - depois da guerra - nunca ninguém tinha reparado...?
Os olhos dele floriram, encantados com a prenda que tinha oferecido a si mesmo.
- Vou-te deixar aqui. Tenho de ir dormir...mas não tenhas medo, porque de manhã, eu volto.
E ele deixou-a ali, enquanto deixava que o novo e matemático relógio Russo continuasse a soar a meia-noite, num som cristalino, mas ominoso. A sala tornou-se escura, e, enquanto a fragrância de baunilha se dissipava suavemente do fino tapete cor de sangue, a caixa estremeceu, assustada. Afinal de contas, era a primeira noite que passava naquela casa estranha e desconhecida.
Não se sabe lá muito bem como é que ela lá se acostumou àquele velho apartamento do sábio tocador de alaúde. Mas a verdade é que sempre que a luz do sol irradiava da grande e única janela rectangular da sala de estar, ela já sabia que havia um pouco mais do que a escuridão a meio da noite. Mesmo antes de ir para o trabalho, o talentoso músico dedilhava no seu antigo instrumento vindo das planícies Russas, e, com aquele instrumento, a caixa conseguia ver perfeitamente os prados Alentejanos de Portugal que há tanto tempo foram uma paisagem, do fundo da janela pequenina do Artífice.
Ali, no apartamento de Alexei, ela apenas conseguia inalar o seu próprio perfume de baunilha. Havia também um baú onde o ancião guardava algumas coisas. E esse, quase nunca falava. Mas tãopouco ela se importava. Afinal de contas, ela era uma caixinha com flores de miosótis. E coisas, feitas para serem postas em quartos de senhoras finas, quase nunca se davam com mobília tão pesada! Uma secretária de madeira áspera, mas resistente, onde um candeeiro com um chapéu verde-escuro olhava sempre, servia de confidente, pois era aí onde Alexei sempre escrevía. Todos estes - e muitos mais - objectos a Caixa tinha conhecido. E no fundo, gostava muito deles, até daqueles os que nunca lhe tinham dito "bom dia, menina". Ela era feliz, porque o velho Alexei dedicava-lhe um grande amor nostálgico por ela.
Ele dizia-lhe - a partir dessa mesma manhã - que ela lhe lembrava da mulher, que o acariava nas horas distantes da sua juventude. Era com aquele perfume de baunilha que ele arranjava inspiração para escrever cartas aos seus velhos e leais amigos de São Petersburgo. Afinal de contas, ele era um homem bondoso! Embora a Caixa nunca conseguisse ver lá muito daquilo que ele escrevia, ela sabia que havia sempre um leve sorriso quando ele dedicava e lia alto:
- Para a minha querida filha Nina.
Ora, se as caixas pudessem sorrir, ela fá-lo-ia com prazer. Mas ela não passava de uma pequena caixa suave de porcelana.
Um dia - sabe-se lá porquê - mas algum dos criados ao serviço de Alexei encontrou a pequena caixa, toda rachada, partida no chão. O criado não disse palavra, nem sequer deitou a caixa para o lixo. Dizem que a inveja toma todas as formas para ferir. E quem sabe, se com uma corrente de ar, na surdina da noite, o armário não teria tido a tentação de se mexer o suficiente para que a caixinha caisse no chão...
Ao saber de tudo isto, Alexei tomou as peças que ainda restavam da donzela morta, e com um carinho de pai, ele declarou:
- A beleza está nas coisas mais insignificantes, até mesmo quando ninguém repara...