quarta-feira, 4 de março de 2009

encontro com o caminho de dois sentidos...

Ao sair do arranha-céus, reparei que uma figura alta estava pontualmente à minha espera. Oh, como me tinha divertido! Já deviam ser uma da noite. Decerto que o preocupado e coitado do Nälden perguntava-se a si mesmo como raio eu não tinha ido embora com o Primo Coutinho e porque é que ele estava ali, àquelas horas.
Realmente, o Dia das Bruxas tinha sido celebrado com uma grande festa de arromba.
Ainda se viam umas pequenas luzes nos poucos bares que estavam abertos ao redor da enorme e comprida avenida principal.
As luzes das lâmpadas, ténues e enfraquecidas pelo nevoeiro, pousadas de dez em dez metros seguidamente no jardim que separava o caminho do metro do dos carros, plantado com bonitas árvores de cerejeira, iluminavam a bifurcação e o grande palácio do Cavalheiro e da estação de metro, mesmo atrás do Anel da Serpente, que era o edifício por onde eu tinha saído.
De resto, só restava como companhia a escuridão das esquinas e travessas labirínticas e apertadas pelos grandes edifícios negros da velha cidade cosmopolita, com alguns datados do século dezoito, que, certamente, faziam contraste com o gigante moderno governado pela SPV. No canto direito do ringue, havia também o Quartel-General da nova rival da centenária Serpentis Politza Vigitz: os SOS, ou, os Serviços Obscuros de Segurança, como são chamados ironicamente, fundados em ’95 pelo General B. Cá para mim, apreciar a diferença entre a antiga Faculdade de Letras atlante e o Hotel Anel é como distinguir um shot moranguito de aguardente: têm os seus nomes próprios, mas o sabor e a sensação duma enorme ressaca e prováveis vómitos é semelhante.
No entanto, é fácil perceber que, ao conseguir este palácio barroco – a velha faculdade que servia anteriormente para ensinar humanidades, línguas e letras – o General B ficou muito bem servido. Talvez até bem mais servido que o seu novo patrão, o Goldtheeth, que ocupava agora os sete andares abaixo do chão do Anel da Serpente. Não havia dúvidas que o hotel centenário, agora intitulado pelo povinho como Casa SPV, era maior que o Palácio Eleonora (eles aqui têm uma estranha mania de adorar a realeza, não achas?); porém, à semelhança das pizas, o gosto é raramente uma questão de tamanho ou melhor massa.
Lá ao fundo, no caminho à esquerda depois do imponente Teatro Parisiense, havia uma antiga auto-estrada que se dirigia para Sudoeste, para a Cidade dos Deuses. Enquanto que, à direita, se estendem, por vezes, alguns bruxos a caírem de bêbados, a meio da noite.
Essa estrada, sinuosa e rodeada de árvores frondosas – tão altas quanto o próprio arranha-céus que se destacava na avenida pelos seus 600 metros de altura – tem um desvio que dá para o sinistro Vale da Morte, e também para o Castelo Negro.
Aqueles pinheiros bravos emanavam já de si uma certa aura infernal, quanto mais o próprio terreno acidentado a dois quilómetros de distância ao olho nu dum bruxo.
Apenas a Lua Cheia alumiava o céu escuro, coberto por ameaçadoras e tristes nuvens azuis-escuras.
Nälden, com um ar meio receoso, e num estalar de dedos, acendeu às pressas um cigarro para se acalmar. Com a cara pálida e quase fantasmagórica na penumbra, ele fumou o tabaco com uma exaltação paranóica nos gestos.
- Não precisas de ficar assim tão assustado. – Comentei com indiferença, alisando provocatoriamente os caracóis com os meus dedos.
Ele apenas encolheu modestamente os ombros, resignado, mas, por aqueles olhinhos castanhos-claros e, por aqueles maneirismos seus, não deixei de notar um pavor presente nos seus pensamentos.
A simples ideia de irmos ao Castelo Negro deixava-o aterrorizado, e, em toda a sua vida de bruxo, nunca pensara em fazer tal loucura.
Contudo, eu já lhe tinha dito um ror de vezes que, um dia, iria ao Castelo Negro para certificar-me se aquela história do meu Padrasto estar vivo é a dura e cruel realidade, ou se é pura ficção científica.
Uma vez que o seu emprego depende do meu estado de saúde, não teve outra escolha senão esperar por mim ao frio.
E devo-te dizer que, para além disso, Nälden é um grande amigo meu e já passou por outras coisas, e, com um grande amor à vida, é natural que – no seu dia de folga – seja o único bruxo a estar só, na mesma mesa, à mesma hora, no Cavalheiro, a apreciar lentamente o mesmo prato de sempre, com a mesma bebida: arroz de marisco com vinho do Porto misturado com néctar de limão destilado. Tal como já te contei, o Cavalheiro é uma mistura dum restaurante, com um clube nocturno francês e um salão de dança de aproximadamente cinco andares, localizado no número 88 da Avenida Principal. Fundado em 1928 pelo bruxo parisiense Alfredo Chévrier (um indivíduo deveras bizarro, diga-se de passagem, foi preso pela Gestapo por suspeitas de ser homossexual, apesar de ser casado), inicialmente como um salão de baile com jantares e almoços, o Cavalheiro teve um sucesso estrondoso por volta dos inícios dos Anos 30.
Por volta dos anos obscuros da ocupação nazi na Atlântida, o conhecido local nocturno de entretenimento faliu, devido à séria acusação de Chévrier. Actualmente, desde ‘79, este edifício é gerido por uma entidade anónima, que financia e dá carradas e carradas de dinheiro aos empregados, bailarinas e chefes de cozinha que trabalham lá. Embora já não seja o rei dos salões ou clubes ou restaurantes de Cyborg Town, continua a ter um seu toque de requinte e elegância pelos seus brilhantes pratos típicos atlantes, e por ter as mais belas dançarinas atlantes, com o estereótipo exótico moreno, mediterrânico, do qual o General B tanto gosta. Como se isso importasse de qualquer maneira, francamente! O turismo atlante é frequentemente alimentado pelo machismo que continua a imperar na nossa ilha, e o Cavalheiro é um hotspot para todos aqueles pimbalhões mulherengos que vem lá dos USA, da Rússia e dos países do Norte da Europa, que gostam das nossas pobres adolescentes que vêm dos bairros de lata ou do inocente campo da Floresta de Cristal. Sinceramente, sempre gostava de saber quem é o desavergonhado que gere aquele antro de…De…Bom! De uma pouca-vergonha, é o que aquilo é. Com aquelas lambisgóias todas, e o maricas do Nälden lá, toda a santa terça-feira. Mas enfim, o que quer que ele queira provar, dentro do seu minúsculozinho aparelho genital, o certo é que não tem nada a ver connosco, não achas?
Antigamente, a SPV era uma polícia honesta, criada em 1933, pela Princesa Swerdinada com o intuito de proteger não só Sua Alteza, a Rainha, mas como também todos os cidadãos atlantes, dum terrível mal, cujo foi ironicamente a base para a organização dos departamentos da nossa querida instituição de justiça policial: a Irmandade Tigre Azul, a pior organização mafiosa da Atlântida nesses tempos. Pouco se sabe acerca desta associação de assassinos, no entanto, segundo os registos da SPV, os seus objectivos, eram claros: obter riqueza e poder. Durante os Anos 30, a SPV, controlada pelo feiticeiro branco – foi a única e a última vez que um feiticeiro branco assumiu a liderança da polícia secreta – Capitão-Mor Manuel António Cabral, o “Irmãozinho”, e o temível e misterioso Grão-Mestre da Irmandade Tigre Azul, lutaram pela supremacia!
Após cinco anos de lutas sangrentas entre bruxos, cyborgs e feiticeiros brancos, o grão-mestre desapareceu enigmaticamente do tabuleiro de xadrez, e, foi aí que a diplomática princesa declarou paz entre todas as classes. Infelizmente, essa paz não durou durante o tempo que ela gostaria: a Segunda Grande Guerra rebentou no mundo, um mês depois do anúncio do fim da liderança de Irmãozinho para o início do reino do conhecido bruxo atlante, o Marquês Kantiano Di Zifirinathüm. Em Dezembro de 1940, a minha querida mamã deu permissão ao meu honrado padrasto e aos Nazis para que eles marchassem sobre a Avenida Principal. Uma vez duquesa, Katharina Von Tifon afiou as unhas para discutir com a Serpente de Fogo, mas foi em vão! Os Von Tifon estavam sob o domínio da paixão que a minha mãe detinha pelo meu Padrasto, que, à medida que os dias passavam, crescia cada vez mais! Por fim, em 1942, com a morte do “O Poderoso” e o assassinato de Manuel Irmãozinho, quatro corações se despedaçaram, com tanta força e sofrimento como as bombas americanas a caírem em Cyborg Town na quinta-feira de chamas, em 16 de Julho de 1942. Swerdinada e a Mamã partilharam, por esta vez, as lágrimas que choraram foram as mesmas, uma vez que ambas gostavam, não do meu Padrasto – a minha mãe não verteu nem uma gota por aquele paspalho. – Mas sim do nosso Capitão-Mor Irmãozinho. Por mais estranho que pareça, em 1950, a minha querida Mamã assumiu o controlo da SPV, uma vez que já tinha experiência nesse campo.