segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Sonho de Burlesco


Antes de passar a ficar consciente, os meus poderes escondidos deram-me outra visão, e quero confessar-te que ontem foi a noite mais aterradora de toda a minha vida! Um dos hotspots favoritos do meu padrasto no Dia da Magia Negra, quando ele pode finalmente sair da toca do Castelo Negro…pode não parecer lá grande coisa, aquela enorme vivenda vermelha situada numa rua secundária e sombria chamada Rua das Framboesas, com cerca de oitocentos e quarenta metros de comprimento, ajuntada a uma série de edifícios com mais de duzentos anos, cheia de lojas baratas e pensões de terceira categoria, onde não podem passar os carros; mas era, com certeza absoluta, o esconderijo perfeito para que a Serpente de Fogo e os seus capangas me escondessem. O ícone do clube Red Witch é uma autêntica caricatura pornográfica da Serpente de Fogo num vestido preto, e…como é que eu sei todas estas coisas…? Porque o vi!...
Meia-noite menos um quarto: as cortinas das enormes janelas estavam cobertas com cortinas verde-cinza, de modo a que as únicas formas de luz eram cinco velas de fogo vermelho a brilhar vivamente numa mesa de café ricamente decorada com flores selvagens tais como dente-de-leão; beladona; rosas; silvas; e vinhas de uvas dos campos de setenta mil anos da Cidade dos Deuses. Na penumbra, à esquerda estava um espelho de dois metros suficientemente grande para uma pessoa passar por ele partido em bocados, e à direita, uma mulher pequena, pálida como a cal, com pinturas vermelhas e pretas esquisitas na cara, seminua, permanecia deitada num espaço delimitado por um giz de mercúrio em forma de losango, com a barriga para baixo, a cheirar directamente um incenso esquisito púrpura.
Era uma espécie de cerimónia ou coisa parecida, ela pronunciava palavras incompreensíveis em Atlante Arcaico – uma versão antiga do Atlante que tem mais de cem mil anos – contorcendo-se em si própria, fazendo repetitivamente com uma facilidade incrível posições de Yoga que só um verdadeiro mestre nessa arte de relaxamento conseguiria atingir. Agora podia supor com toda a minha certeza que ela está completa e definitivamente louca!
Segundo os meus estudos em Magia Negra, ela estava a invocar um bruxo do Limbo dos Espelhos, e parecia não estar a resultar. Esta técnica de magia era utilizada pelos bruxos mais experientes e poderosos, mas nem uma bruxa com a idade de noventa e um anos conseguia atingi-lo na perfeição.
Graças a Deus que tirei um curso acerca de Atlante Arcaico para compreender o que ela continuava a murmurar entre dentes:
- Grande e Supremo Deus da Morte e do Mal Atlante, eu vos chamo, meu Mestre!
Ò Aquele que exterminava almas e corpos de imbecis fadas com um só dedo, erguei-vos das trevas e fazei sentir o vosso majestoso poder!
Grande Filho de Tsesustan, Rwebertan Samiel Tristan Euncätzio, eu vos INVOCO!
As fatais doze badaladas soaram por toda a Atlântida, e aí, nem um som de fantasma ou cheiro repugnante se fez sentir, mas sim toda a Atlântida mergulhou numa onda de um perfume de homem forte demais para se respirar, e uma brusca neblina tão espessa como uma sopa de batatas e ervilhas cobriu por completo a Lua.
Porém…Dez minutos passaram….E nem sinal do tal “Deus da Morte” que a maluca referia nos seus bizarros cânticos.
Esforços inúteis eram aqueles, não achas?
A mulher começou a ficar impaciente, batendo com o pé no tapete vermelho de fogo infernal que tinha comprado especialmente para aquela ocasião.
Não seria apenas imaginação sua ou tentativa falhada de ver o seu ex. Marido…?
Afinal, nunca se sabe o que pode dar a uma viúva…!
Levantou-se daquela posição tão desconfortável, achando estranho o bruxo estar atrasado, e ainda com os pés descalços no tapete da sua própria energia mágica derramada, os seus olhos pintados de negro começaram a arregalar-se, enquanto esperava já com a mostarda a subir-lhe ao nariz.
Pedira a solidão absoluta em todo o hotel só para ela para todos os oficiais da SPV, explicando-se que era um assunto secretíssimo de Estado, que não seria revelado a ninguém; gastara o equivalente à riqueza dum sultão ao “redecorado” o seu “cantinho”; ainda por cima passara a manhã inteira a preencher uma papelada do tamanho de não-sei-quê para ver navios….?!
Se ele não chegasse pelo menos até à meia-noite e meia, aquilo certamente não iria ficar por ali, não senhor.
Ali estava ela, a fazer figura de ursa, apenas com um biquini de ouro puro e com um manto vermelho de seda pura e uma coroa de diamantes sem mais ninguém, e com um ar de poucos amigos.
- Bebé, amorzinho…- Disse ela de forma dissimulada, mas logo mudou para um tom, digamos mais alto. – APARECE, CASO CONTRÁRIO VAIS TER A PIOR NOITE DA TUA VIDA, SEU IDIOTA!
Saltando e lançando vigorosamente um vaso de porcelana pela porta, despedaçando-o aos bocados, a irada e histérica mulher estava incontrolável!
- SEU CRETINO MENTIROSO DE UMA FIGA! APARECE, SENÃO…
De nada valeram os seus agudos gritos de ira, que ecoaram qual rugidos de uma tigre fêmea por todo o arranha-céus, ressoando o “senão…” com uma força tal que o seu querido espelho de cerimónias quase se partia.
Mal ia derramar a primeira lágrima de ressentimento por ter confiado em superstições idiotas quando um surgiu vulto esguio sobre-humano: vestes negras como a cor da morte, não distinguindo completamente o rosto ou forma, ou o quer que aquele diabo fosse, de uma estatura alta, que, comparado com a Serpente de Fogo, este era um gigante escondido por entre chamas vindas do Inferno.
A sua voz poderosa e severa, com um misto diabólico de astúcia na pronúncia e sotaque atlante, disse sarcasticamente:
- Por que gritais, Majestade?
O monstro robusto apontou para os ponteiros do relógio da avenida, anunciando meia-noite e ponto.
Aí, a mulher corou de vergonha, baixando a cabeça sem saber que fazer. Tinha mandado adiantar a torre principal da Atlântida na Cidade dos Deuses meia hora para receber os convidados a tempo na festa, e com os seus compromissos, esquecera completamente de arranjá-lo pontualmente para receber um convidado ainda mais ilustre e poderoso dos que os outros à meia-noite.
É mesmo distraída, tem os genes sonhadores da Sara, que se há-de fazer?
Fez uma vénia profunda ao senhor, ajoelhando-se solenemente qual bela e educada dama que julgava ser perante o fantasmagórico espelho, e baixou os olhos como se fosse escrava do espelho, literalmente.
Não percebia nada do que estava a acontecer, mas pelos vistos, aquele devia ser o amante a que a mulher é tão dedicada. Talvez o Finistergäse trabalhe para ele…
Quando se levantou, olhou para o seu “Mestre” de uma forma quase de meter dó, e limpando inocentemente as lágrimas, e fingindo-se de mártir, soluçou numa voz suplicante:
- Bebé S…Sabes que o prazo para me levares daqui está quase a chegar ao fim e eu…
Mal ia falar a próxima palavra, o homem ou fosse o que aquela besta era, interrompeu-a friamente:
- Amanhã!
Sabendo o que aquilo significava, a desesperada e condenada rainha ajoelhou-se duma forma humilhante, fazendo uma incrível cega para não olhar directamente para o Diabo, chorou cada vez mais.
- Faça com que o prazo se prolongue um poucochinho. – Sugeriu ela sem outra alternativa, num tom graxista. – Sei lá…Mais uns meses, semanas… Por favor, tenha piedade de mim, Vossa Excelência. Sessenta e seis anos passam depressa demais para uma Nobre de vinte mil! Por amor da vossa Virtuosidade, não me conduza ao implacável Castigo Eterno!
A voz do espelho respondeu de uma forma rígida:
- Nen!
Foi então que a escorregadia e falsa bruxa esboçou um sorriso malicioso, dirigindo-se para o espelho de uma forma confiante, mostrando o seu belo corpo ondulante e sensual de um lado para o outro.
- Trago para o meu senhor uma nova vítima! – Comentou com um brilho maldoso nos olhos claros de víbora. – A minha jovem e bonita amiga de maquilhagem já está presa nas masmorras lá em baixo pelos meus homens, ela, que nunca pisou o vosso reino obscuro. É uma alma apetitosa, ainda na flor da idade, ingénua, mesmo que se diga sabida da vida.
De que pobres coitados aqueles dois estariam a falar? Achas que estavam a falar de mim? Só espero que não!
O diabo, mais interessado em saber mais acerca da rapariga, perguntou:
- E que deseja essa formosa duquesa?
A Serpente de Fogo soltou uma risada sádica, qual uma hiena que não está boa da cabeça, contente por se ter livrado de mais uma possível rival.
Limpando delicadamente as longas unhas com uma lima como se fosse uma famosa estrela de cinema, ela respondeu de uma forma irónica:
- A tola acredita mesmo que um dia irá desenterrar o misterioso passado da sua família, e por que razão os seus pobrezinhos pais a abandonaram. Uma historieta comovente como só se vê em filmes pirosos, até apetece vomitar de tão estúpida que é.
Terminada aquela resposta, passaram-se três longos minutos, até que o lúgubre homem coberto na escuridão do vidro disse enigmaticamente:
- Seis meses de fortuna, no sétimo ocorrerão uma catástrofe enganadora!
Que planos diabólicos eles estariam a tramar…?
Um sorriso maldoso e cheio de esperança apareceu logo na cara da falsa mulher.
Estaria a mentir-me quando afirmou que eu era, de uma certa forma convincente, a sua única verdadeira amiga....?
Parecia bem que sim, já que esta era uma bruxa invejosa da beleza de qualquer mulher que se atravessasse no seu caminho. Disso eu posso ter a certeza, os olhos azuis grandes dela brilhavam de triunfo.
- Querido bebé, ò Senhor da Vida e da Morte; faz com que essa estúpida encontre o seu derradeiro fim. Que o dia 6 de Junho de 2006 seja teu, das tuas mãos, transforma as suas em mãos assassinas! – Declarou sombriamente a maldita mulher. – Com elas, a desgraçada cravará nas costas do seu amado cyborg um punhal, condenando-os ao desespero; a eles e a toda a Atlântida para que só tu, meu adorado Mestre, governes com as tuas trevas este reino!
- Sim… - Murmurou a voz, num tom terminal e sinistro…Que bizarros e estranhos segredos a Cyborg Town me estava a reservar…?!