quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Uma pomba branca na noite





Eu já suspeitava que a “Brigada de Engraçadinhas
cor-de-rosa” tinha de ir fazer fila por causa do Thaiko Sung, que estava um
pouco entretido por não ter trazido guarda-costas e ter de tirar as suas armas
diante dos agentes da SPV e das Fadas, no grande átrio duplo que mais parecia
um templo bellante do que um palácio, com a figura de Bilafassabnsair esculpida
em mármore branco no canto superior, entre duas criaturas que eu presumi serem
um dragão Japonês e um jaguar Azteca: as duas criaturas que guardam o brasão da
família real bellante. Em cima, no
primeiro andar, estava Thaiko, a retirar uma enorme espada da bainha, enquanto
um homem encorpanzado de uniforme verde-escuro lhe inspeccionava o corpo – Não
me digam que eu também tinha de passar por aquilo!



Enquanto isso, Sumitraijin – uma jovem kappa, uma demónio
japonesa – suspirava com Nuo, ambas vestidas de lindos vestidos de seda, um
azul cor de jade com o cabelo apanhado numa trança resplandecente, a outra
cor-de-rosa, com o cabelo apanhado com uma fita dourada, na maneira do Norte da
China.



Quem é o Thaiko Sung? Um jovem feiticeiro de pai sul-coreano
e mãe Japonesa cuja família foi chacinada pela Irmandade do Tigre Azul, uma
organização secreta de bruxos Japoneses que queriam resuscitar o Assassino do
Amor ou coisa parecida. Bem, desde o fim
da guerra que este rapazolas tem sido como um ídolo! Ele não é assim tão velho quanto o meu avô,
na verdade só tem oitenta e um anos, o que é uma ninharia para um feiticeiro do
prestígio dele.



Uma vez que ele conseguiu sobreviver à guerra – e à ocupação
Japonesa, e ao Comunismo e a tudo o mais – ele tornou-se numa espécie de herói
para as raparigas bellantes, especialmente para as que descendiam de pais
orientais.



Ele é um grande amigo de Sara, mas ambos já não se vêem há
décadas. Por isso, não me admirei nada quando ele a abraçou em frente de todas
aquelas raparigas bonitas, fossem elas francesas como Spectinha, Russas, como
as filhas do anterior Rei dos Bruxos Malaghetyev, ou, como as fadinhas da
Floresta de Cristal, Nahualli.



Ele tinha um aspecto de um jovem muito novo, para aí nos
seus vinte e poucos anos, mesmo assim, o seu sorriso não desapareceu ao ver que
Sara vinha acompanhada por mim, pela Tsuna (que quase falecia de tão contente
que estava ao conhecer Thaiko Sung), e pela Serpente de Fogo.



Ele fez uma vénia formal em direcção à Imperatriz da
Bellanária, enquanto revelava as luvas de veludo azul-escuras fora da capa
branca pérola.



- Vossa Sagrada Majestade! – Ele pronunciou no seu sotaque
do Norte, num tom de respeito, enquanto acenava levemente a cabeça. – Estas não
serão a Tsuna von Tifon e Jessica von Tifon?



A Seprente de Fogo mais parecía uma árvore de natal de tão
orgulhosa que estava por esta ser uma festa organizada em sua honra. Fez um gesto exagerado com a luva lavanda de
seda, enquanto apontava para o tenente, que parecia um pouco embaraçado por ser
o alvo das atenções naquele momento.



Definitivamente, ele não era o tipo de homem que gostasse de
fazer o papel de conquistador. Mesmo assim,
as mulheres andam sempre atrás dele: um
jovem feiticeiro, influente nas altas esferas da Magia Negra, que herdou uma
fortuna da família, e ainda por cima com uma cara bonita – coisa rara num
oriental – é quase um milagre para as bruxas bellantes! Hey, são aquelas bruxas Alemãs coscuvilheiras
que dizem isso, não sou eu! Se bem que o Thaiko é um pedaço de rapaz, eu
prefiro homens mais...viris!



A Serpente de Fogo andava toda derretida por ele – pudera, o
meu primo andava nos copos nessa altura!



- Com certeza, Tenente Sung.
Meninas, este homem encantador é o Tenente Thaiko Sung da Guarda de Sua
Maléfica Majestarde, o Rei dos Bruxos.



Ele inclinou veemente a cabeça, com um ar de quem está a
fazer frete do que quem está numa festa.



- Muito prazer em conhecê-las. – Escondeu o quanto estava
aborrecido com um tom gentil e delicado.



Subitamente, uma voz fez o jovem Coreano saltar do ar:



- Hey, Thaiko! Isso são maneiras? – Igor Andrysiak, o homem
que tinha derrotado o meu padrasto, tinha um ar trocista, ao envergar o seu
velho uniforme da guarda de Kasimir Malaghetyev. – Privyet, Menina Jessica.



Eu soltei uma risada, enquanto entreguei o braço, mais
divertida, ao Kolmanatry com sotaque eslavo.



- Pensava que o senhor não queria ir a este “circo imperialista”...
– Eu comentei num tom provocador, como sempre.



O homem de um metro e setenta e cinco sorriu com um ar
brincalhão, quase como se ainda fosse uma criança. Os seus olhos azuis eram
masculinos e grandes, enquanto o corpo mentia a sua inclinação sexual. Pensei
para com os meus botões se não conseguia seduzir o coração do velho Igor. Mas não, o Igor é um daqueles homens que não
é fácil de se contentar, mesmo com os homens. Ele é homosexual, embora não se
pareça nada com um: a voz dele é grave e profunda, capaz de encantar qualquer
mulher, o sotaque é agradável, mas não dramático ou rude como o Japonês das
minhas tetravós. Ele tem umas mãos
fortes, umas mãos que já tocaram balalaica umas quinhentas vezes.



Enquanto me encaminhava para o vestuário das senhoras
através dos largos e barrocos corredores, ele olhou para mim espantado, mas
depois pousou as mãos nos bolsos, como se estivesse a remoer uma canção
qualquer que tinha esquecido no salão de música.



- Ah, a menina Jessica está deslumbrante! Você é que devia
ser a meretriz deste baile, não aquela megera opurtunista da Serpente de
Fogo. – Igor comentou ao puxar de um
cigarro, e depois formou um anel de fumo belíssimo, como se fosse uma flor
branca. – Eu vim por causa de si!



Revirei os olhos. Pois claro, um comunista extremista de
esquerda a vir a uma festa de ricaços só porque uma bruxa da segunda família
mais importante da Bellanária é uma brasa? Poupem-me. Ele provavelmente estava à procura do meu avô
para fazer pouco dele!



- Está a brincar, Igor! – Ri-me uma vez mais, num tom
sincero. Sentia pena por Igor, que, depois da morte do seu amigo Alejandro,
nunca mais fora o mesmo. Por uns momentos, a minha voz suou com um pouco de
amizade fraternal pelo bruxo eslavo. – O senhor sabe que o meu amigo Pedro
também vem?



Igor puxou de um pouco do cigarro, já mais animado. O quanto
aquele homem com uma mente dramática e poética me põe como se me tivessem
acertado com uma flecha! Quando vejo os seus olhos azuis, parece que mergulho
na magnífica e melancólica melodia do “Lago dos Cisnes”.



- O Pëotr? Que bom! Assim temos mais um camarada para nos
divertirmos. – Ele disse, na sua voz. – Sabe porque é que estou contente? Bem,
vou contar-lhe: aquele sacana do seu padrasto não conseguiu a autorização do
Rei Kazimir para vir até cá! Ninguém lhe enviou um único convite!



O bruxo ucraniano bateu uma palmada no seu próprio joelho:



- Bem que gostava de ver a cara daquele palerma.



Imaginando a cara do meu padrasto, eu senti um terrível
arrepio, e não fui só eu! Aquela cara de
bruxo de cérebro retorcido não tem piada nenhuma. Sara tremeu quando leu os
meus pensamentos. Eu sabia que aquela
suíte do baile russo não trazia lá grandes recordações à minha amiga.



Estava eu, a Sara, a
Nuo, e a Sumitraijin a dirigirmos para os vestuários das senhoras, juntamente
com o Igor. Eu confio nele, é um porreiraço!
E depois, é um dos poucos homens que diz não à Serpente de Fogo e à
minha mãe. Só isso faz com que eu diga: “Ele é um tipo que não se mete em
merdas”. E não é.



Enquanto as meninas estavam todas histéricas, a Sara
empurrou-me para perto de uma das estátuas de cabeça de leão e corpo de dragão.
Parecia muito embaraçada, mas, ao mesmo tempo, feliz.



Suspirou, com um ar sonhador. Depois, falou, num tom confidencial, mas
doce, como se estivesse a saltar de nuvem em nuvem. Provavelmente, até era
normal, estava a usar um vestido todo ele branco, com o cabelo apanhado num
caracol com uma bandolete prateada.
Mesmo assim, as suas faces coravam, como se fossem os meus sapatinhos
vermelhos e ridiculos. Ai, ai, Sara! Que
mente tão inocente que tu tens!



- Posso contar-te uma
coisa, Jessica?



- Não vejo porque não. – Encolhi os ombros, admirada. Eu já
devia estar habituada, mas tenho de admitir que fico derretida com a doçura da
rapariga. Ela parece feita de ouro quando fala dos assuntos do coração.



- O Mago da Música, aquele feiticeiro que se anda a
corresponder comigo na internet, disse que vinha ter ao baile! – Ela confessou
num fiozinho de voz, de cabeça baixa. – Estou tão nervosa! E se for uma
armadilha? E se...



Nuo forçou um sorriso, ao ouvir à socapa o princípio da
nossa conversa.



- Não vai acontecer nada, querida. Está demasiada gente para
que um bruxo malvado te quisesse raptar!



Igor acrescentou, com um tom muito seguro, numa das suas
anedotas racistas acerca de bruxos:



- E se esse princípe encantado se transformar no Duque do
País do Sol Nascente, eu dou-lhe uma bofetada nos dentes que aquele velho
jamais se vai esquecer!



Sara olhou para o amigo com os sobrolhos carregados, ao pôr
as mãos nas ancas. Ela conhece-o melhor
do que eu, mas acho que nunca deixa de ficar indignada com as “piadinhas
inofensivas” acerca dos Japoneses. Afinal de contas, a bisavó era Japonesa.



- Igor! Eu tenho a certeza que o meu Tio Adrian está bem
morto!



Eu cá não me meti na
conversa, mas parecia que a Sara estava muito triste pela maneira como os
amigos dela a olhavam.



Sumitraijin ficou envergonhada e corada, ao dizer:



- Se calhar é melhor não tocarmos no assunto esta noite. –
Depois, sorriu ligeiramente. – Para além disso, a Senhora Roshini também vai
estar cá.



Virou silenciosamente as costas a Igor, enquanto caminhava
para as portas brancas do vestuário.



Olhei para Sara, enquanto lhe tirava o véu . Ela parecia que
ia para um casamento, não para uma festa!



- Hey, não chores! – Fiquei espantada por ainda haver umas
lágrimas no canto dos olhos de uma mulher mais velha que eu. Se calhar a pureza
da Princesa Arco-íris nunca se gasta.
Conseguía cheirar o medo dela à distância. Mesmo assim, não me
aproveitei da situação. Tive de ser um pouco sincera com os meus olhos azuis. –
Não duvido que haja bruxos, mas agora é diferente.



- Como é que é diferente? – Perguntou a Sara, com as
mãozinhas nuas nos lábios. – Parece que estou a viver um sonho...e mais cedo ou
mais tarde, vai tornar-se num pesadelo!



Sorri, embora o tema que decorava as paredes à beira das
portas do vestuário não era lá grande coisa: uma pintura Japonesa do Diabo com
cornos e dentes afiados, tentando apanhar umas fadas inocentes num fundo
vermelho de veludo.



- Agora, tu tens amigos que gostam de ti e que vão
proteger-te! – As minhas mãos juntaram-se às dela, enquanto olhava para uma pequena
caixinha que ela trazia nos bolsos.



- É essa a caixa maldita? – Perguntei, nada impressionada.



E a Sara acenou com a cabeça, assustada. Pronto, agora vou
ter de contar o que é que esta caixa tem de tão especial. Esta caixa, com uma flor de lótus cravada em
madrepérola, é uma caixinha de música. Sabes, aquelas coisas muito piegas que
as senhoras tinham para se lembrarem das pessoas que amavam? Bom, acontece que
quem deu o presente à Sara foi o homem que a perseguiu durante aqueles anos
todos: o meu padrasto. Sempre que ela a abre, a ingénua pensa no homem que a
fez tanto mal, e logo tenho de lhe enxugar as lágrimas.



Perguntei porque é que ela não se livrava de uma vez por
todas daquela porcaria – e aquilo é mesmo uma porcaria, tem mais de cinquenta
anos, por amor de Deus!



Ao que ela respondeu, caisbaixa:



- Já tentei atirá-lo
para o mar, dá-lo a alguém, mas parece que volta sempre para mim. E depois, não
sei porquê, mas sempre que o abro, parece que fico encantada com a música, é
como se ele ainda estivesse, mesmo perto de mim! – Havia um brilho estranho nos
olhos negros da princesa, ao dizer aquelas palavras disparatadas.



Foi aí que eu, uma rapariga culta e de juízo, decidi dizer
esta de se tirar o chapéu:



- Cá para mim, acho que ficaste um bocadinho apaixonada pelo
tipo.



Os olhos da rapariga, mais pequena que eu, olharam para mim
como se eu tivesse dito a maior barbaridade à face da terra. Agora é
que eu tinha feito asneira da grossa: nunca se deve dizer à Sara que ela estava
apaixonada pelo meu padrasto! E eu sabia
disso, eu sabia que ela não gosta de ouvir estas coisas, que ela fica lixada
quando se diz isso, mesmo se for a brincar. Mas eu não estava a gozar com ela,
só estava a dizer a verdade!



Ainda com lágrimas nos olhos, ela olhou para mim, muito
chateada, e explodiu:



- Se queres que te diga, Jessica, eu jamais iria amar um
homem como ele!



E fechou-me a porta na cara, abruptamente. Pobre Sara, acho
que não devia ter dito uma coisa dessas...



É só porque, nessa altura, a Katharina – a minha mãe –
estava perdidamente apaixonada por ele, a mãe da Serpente de Fogo também...porque
é que a Sara não haveria de estar? Ah, sim, porque ela é a Princesa Arco-íris.
Coisas como apaixonar-se por Nazis não acontecem a uma princesa sagrada!



Deve ser por causa das pessoas que ela não gosta de o
admitir. Toda aquela pressão, o facto de ser considerada uma mulher “pura” deve
ser esgotante. Que coisa mais estúpida!



Bem, de qualquer maneira, acho que, se bem conheço a Sara,
ela nunca se apaixonaria por um homem daqueles. Não, não a Sara jamais faria
uma coisa dessas.