sábado, 30 de abril de 2011

O Discurso do Retorno...

Ao chegar apressadamente depois de um merecido duche, posto o creme para as borbulhas, e me vestido convenientemente, na sala de jantar para pedir o meu pequeno-almoço habitual – cereais com leite e chocolate, uma salsicha alemã com ovo estrelado e bacon, um copo de sumo natural de maracujá e duas tostas – vi que toda a família estava a comer também o seu pequeno-almoço, num silêncio sepulcral, qual cemitério com os seus cadáveres vivos, com uma cara que poderia muito bem meter medo a qualquer um.

Até parecia que morrera alguém.

Nem o Hans, o Primo Coutinho ou o Nälden – que costumam ser os mais faladores à mesa, quer seja almoço ou jantar – diziam uma única palavra.

Eu fiquei aterrada com tal melancolia, se o ambiente estava tão negro antes da “desgraça” chegar, imagina o que iria ser quando o meu padrasto estivesse por cá.

Até podiam pôr uma marcha fúnebre como banda sonora que ficava uma base…

A Serpente de Fogo à medida que comia a sua torta de maçã e natas e brócolos com batatas cozidas e ovo mole mergulhado em azeite (um prato de pequeno-almoço tipicamente atlante, que, cá em casa, é obrigatório e sabe deliciosamente) com considerável vagar, embora esboçasse um pequeno sorriso malicioso que não passou dos cantos da boca, surgia de vez em quando uma lágrima de terror que caía pela sua face maquilhada e pálida; a Katharina arranjava minuciosamente o seu cabelo louro enquanto servia aos restantes o leite, sem pronunciar palavra, mas com um sorriso ainda mais impaciente que a Rainha da Bellanária. O Rutger e o Ernst brincavam sem vontade nenhuma com as demónios, a tremerem de medo, tanto os dois alemães como as japonesas. Todos os servos da casa permaneciam profissionais e duros consigo próprios, sem qualquer expressão de sentimento. Hans tentava em vão ver se os seus livros de Educação Física e Ciências Negras da Faculdade serviam para aguentar as gomas e tosta mista com salsichão mais um copo de sumo de maracujá.

Tentei esboçar um sorriso ao ver aquela cena, mas Tsuna e Solaris tão-pouco queriam consumir os seus morangos com tostas e sumo.

Apenas o Tio Karl resmungava enquanto lia um livro em Alemão e bebia um copo de absinto perlado, segundo os meus poucos conhecimentos – que a propósito dava o seu nome à revista – era acerca dos graves atentados executados por bruxos do Afeganistão e Iraque. Pela primeira vez em duzentos anos, não tinha feito a barba, e entre os seus palavrões incompreensíveis em Alemão, ouvia-se algo como «.…Orientais ou Ocidentais, é tudo a mesma coisa. Mas não faz mal, porque, daqui a bocado, todos nós havemos de demonstrar do que é que os Bruxos são capazes…»

Ao contrário dos outros, haviam duas crianças muito morenas e incrivelmente semelhantes, se não fosse a diferença de sexo que brincavam sem quaisquer preocupações com os dois guardas e com as outras meninas. Pareciam tão felizes e ansiosas, só os Deuses sabiam a razão de tanta alegria…!

Para aliviar as coisas um pouco, tentei dar um empurrãozinho para a conversa, e tentei mais uma vez, um largo sorriso de orelha em orelha, para a família ficar mais feliz por rever a ovelha negra, encolhendo os ombros, e pondo inocentemente as mãos nas calças, como se fosse um dia normal.

Hans finalmente participou na conversa, a gaguejar no fundo da sala com uma voz fina:

- Jessica, vai dar um passeio pela Cyborg Town…Irás descobrir que os malvados fuinhas da SPV prenderam e torturaram mais Cyborgs, Humanos e Fadas do que o costume! Isto é tudo por causa do novo Rei dos Bruxos ter sido libertado do Castelo Negro...!

Maximilian Oniphrius abanou a cabeça tristemente, em sinal de que concordava com o sobrinho.

- Nem a Fada do Inverno nos veio visitar, todos os fantasmas e demónios da Cidade Perdida estiveram silenciosos desde que aquele crápula ganhou liberdade! Maldito Dia da Magia Negra! - Acrescentou lugubremente, ao olhar para o relógio do átrio. - A reencarnação do Assassino do Amor estará aqui dentro de quatro horas.

Os fantasmas das minhas tetraavós acenaram com as cabeças com os fogos-fátuos a pairarem sobre as cabeças delas. Os seus olhos tornaram-se mais sombrios enquanto comentaram em conjunto:

- É verdade que o Mestre vem cá…Nós, fantasmas, fadas e demónios pressentimos melhor estas coisas do que a maior parte que os outros seres…

Ao dizerem isto, a chorar muito infelizes, as pobrezinhas correram a fugir da fraca luz que iluminava a deprimente manhã.

À medida que os pesados ponteiros da torre da Cidade dos Deuses avançavam, conseguimos ouvir de Cyborg Town, lá de longe, apenas as marchas lentas dos soldados da SPV, julgando-se os melhores bruxos de sempre por serem os primeiros a anunciar a chegada de um bruxo com a magia equivalente à do Assassino do Amor. Aquelas passadas ao ganso não enganavam ninguém. Daqui a pouco já percorriam o nosso elegante bairro e iam fazer barulho.

A mulher mais velha do Château, mais para não dizer a mais convencida, suspirou como se não fosse nada com ela, bebendo naturalmente o seu sumo natural à base de couve-flor, sem corantes nem conservantes.

- Vá lá...Até parece que o Reini é assim tão mau! - Disse a minha mãe, ajeitando a sua mini-saia de cabedal escura e ao mesmo tempo, à procura do seu batom mais sensual.

O Nälden aproveitou a altura para se levantar delicadamente, esboçou um sorriso amarelo e ergueu a sua chávena solenemente até toda a gente desatar a pequenos risos e sorrisos por parte do seu coitado público.

Realmente aquele não tem remédio, mas é bom ele ter essa ideia de animar a família, é para isso mesmo que eu e ele estamos aqui: para impedir que a Escuridão e Tristeza se apoderem desta casa e do maravilhoso reino de conto de fadas que ela simboliza.

Esticando o mindinho mais longe que podia, riu-se também, e, pousando com cautela a chávena, declarou com doçura bizarra para um homem:

- Não falemos disso. Para mim os caprichos são hóspedes do Mal. “Sempre com o espírito ligeiro, dançar, cantar e beber toda a vida, é esse o melhor ideal!” Por exemplo, havia uma vez uma pobre prima minha sonhou que a porta do seu quarto se abria…

Mas o velho Tio Maximilian Oniphrius não quis saber e ergueu a sua mão rapidamente, fazendo compreender que esta não era a altura certa para haverem piadas de mau-gosto e num segundo, olhou-o severamente.

- Por favor, Nälden! Cala-te! - Disse ele friamente. - Não quero mais detalhes sobre as tuas amaricadas parvoíces. E ai daquele que mencionar uma vez mais aquele ser desprezível! Eu juro que lhe corto a língua pessoalmente!

Depois levantou-se da sua cadeira, com o nariz empinado, e dando largas e majestosas passadas, abriu as portas como se tratasse um desafio ao seu viril valor. O meu querido tio aguenta tudo, ele é um calhau...quer dizer, ele é uma rocha, duro que nem uma rocha! Pois claro, é um Von Tifon. O Tio Maximilian é o irmão mais novo a seguir ao Tio Karl Honestoffmann von Tifon (os irmãos do meu avô Adrian), e é tambem um dos bruxos mais benevolentes que eu já conheci. Acredita em mim: debaixo daquele aspecto de durão, está um homem muito bondoso.

Lançou-nos um ar triunfante enquanto se dirigia qual velho e leal leão, rei da selva para o seu próximo desafio para as portas do átrio que davam para o largo carreirinho que por sua vez ia dar lugar aos portões onde ao seu lado estava estacionado o seu Mercedes Benz prateado - o Tio Maximilian tem cá um estilo não achas? - com a chave na mão direita. A minha mãe, o Rutger, o Ernst, o Tio Karl, iam com ele. Iam buscar o meu padrasto ao Castelo Negro para o receber com condignidade...Acho que é assim que se escreve.

Os olhos do meu tio brilhavam com orgulho. Isso significava um discurso, um longo, maçador e estúpido discurso acerca das grandes vitórias e derrotas da Magia e sobre os feiticeiros. Começou primeiro a dizer que não era à toa que o meu padrasto ia ser libertado no início do Inverno. A seguir, prolongou-se numa frase a dizer que apesar de não gostar muito do meu padrasto, este seria talvez o primeiro passo que a Magia Negra alcançaria para atingir o apogéu de dias idos. Ele, que já é um feiticeiro dos seus duzentos e cinquenta anos, sabe muito bem disso. Ele é da época antes do Tratado da Magia Universal. Clamou para termos esperança de dias melhores, e que a batalha ainda mal tinha começado. Que nós, como representantes altíssimos dos antigos guerreiros astecas humanos que sacrificavam os prisioneiros aos Deuses, os que tinham tomado o lugar dos fidalgos dos Humanos, e os que agora se viam num período de decadência e de incerteza, só tinhamos razões para nos alegrarmos com esta chegada. Ele quase que não tinha palavras para expressar a insegurança, e talvez, a dúvida que palpitava no seu peito. Mas tinha qualquer coisa ali dentro do seu coração - ou lá o que é que nós os bruxos temos - que lhe dizia, que isto não era o fim, mas apenas o começo de uma era próspera, tanto para bruxos, como para Humanos, Fadas, Demónios, Cyborgs e Deuses.

Nós somos muito vaidosos...quanto mais o Tio Maximilian. Mas ele é porreiro. Um pouco dramático de mais, mas porreiro. Ainda por cima, ele tinha bebido demais ontem à noite, pelo que cada uma das frases que ele dizia era interrompida pelos soluços do álcool. O Tio Karl, que gosta muito de dizer piadinhas, perguntou quando o Tio Maximilian disse que tinha qualquer coisa no coração:

- Isso não será ar na canalização, maninho?

Toda a gente (incluindo as fantasmas das minhas tetravós e a Tia Charlotte, a irmã da minha mãe Katharina) desatou a rir. Enquanto isso, o Tio Maximilian não se cansava de dizer:

- Silêncio, por favor!


Com o discurso terminado, ele deixou que o sobrinho Rutger lhe vestisse o caro e comprido casaco de pele azul-escuro, e, com a espada de Milshatoranfang (a espada ceriminonial do Duque com um design japonês, oferecida pela Senhora Shamanarta ao primeiro Von Tifon, há centenas de anos atrás) embainhada à cintura do feiticeiro principal da Família von Tifon, com um ar solene e aristocrático, ele dirigiu-se, acompanhado pelos sobrinhos e pelo irmão, até ao carro. O meu tio tinha umas botas castanhas-escuras e umas luvas brancas. Normalmente, os bruxos - as bruxas também gostam de usar luvas, mas é muito raro eu ver a minha mãe Katharina a usar luvas - gostam de se vestir muito bem.

Dez minutos depois, já nem se distinguia as luzes do carro no meio do nevoeiro matinal. Não há dúvida que o Tio Maximilian Oniphrius sabe falar....pois claro!

Sim senhor, a isso é que chamo falar em público, muito bem! Estava muito bom, aquele discurso a sério que sim. Achaste pateta? Para ser franca, era um pouco pateta, mas nem assim tanto! Eh, eh, eh…