terça-feira, 20 de março de 2012

Interrogatório entre o pó-de-arroz

A Rainha das Fadas, com um elegante vestido, cruzou os braços, como se estivesse muito desconfiada de que algo de mal pudesse vir a acontecer à pequena Tsuna. Os olhos delapidados e suaves, mas austeros da Senhora Roshini dardejaram para a janela.




- É melhor fecharem aquela janela senão ainda vai acontecer uma desgraça! - Avisou a experiente fada de um metro e cinquenta de altura.




Eu estava completamente aparvalhada: a Tia Charlotte, a Tia Irene e algumas ondinas correram apressadas para a janela e fecharam-na com o trinco. Até parecía que estavam com medo que algum demónio tivesse possuído a minha irmã Tsuna! A Tia Charlotte estava mais branca do que um papel, a Tia Irene até fazía uma careta de quem tinha comido algo estragado, e a Sara, no seu cantinho, a tremer que nem varas verdes.




Um pouco nervosa, a minha tia Chinesa com um metro e setenta soltou um suspiro, muito aliviada. Estava com uma das mãos ainda na fechadura do trinco da grande janela, e a outra no braço da filha. O cenário era no mínimo ridículo. Quer dizer, eu sei que os bruxos costumam ser um pouco perversos, mas nós estávamos no terceiro andar. Duvido que conseguissem ver qualquer coisa de cá dentro.




Arqueei as sobrancelhas, espantada com o facto de que todas as fadas, raparigas humanas, e feiticeiras tinham ficado um pouco perturbadas com aquele episódio esquisitíssimo.




- Bem, se a Tia age assim por causa de um carro fora do prazo desconhecido, nem quero saber como é que é quando aparece o Lao lá em casa... - Comentei, ao tirar os sapatos de salto-alto, cansada. - Vou tomar um banho.

De repente reparei que a Rainha das Fadas, como se fosse uma senhora daquelas actrizes Chinesas que vemos nos filmes Bellantes - que, para tua informação, são a maior seca do mundo, sem contar com o facto de que eu só percebo metade do que eles dizem em Bellante do Norte - dos decadentes e poeirentos cinemas em Shunamari , estava a agarrar-me. Até parecía a que fazía de mãe da Elizabeth Montgomery no Bewitched . As únicas diferenças são: a Senhora Roshini não tem um ar nada excêntrico de mulher Americana e de bruxa muito menos! É só porque ela estava a olhar-me com uma cara de quem conseguía ler-me os pensamentos. Hey, não comeces a gozar, a dizer que eu sou cota e não sei que mais!
É só porque o meu avô - sabe-se lá como - tinha gravado os episódios todos a preto e branco da série original dos Anos 50 - e aos sábados, costumava arrastar-me só para eu vê-los com ele. Eu cá nunca achei lá muita piada a sitcoms Americanas. Não têm imaginação nenhuma e a política do "nonsense" na série estava com uns efeitos especiais tão foleiros que eu prefería mais ver uma repetição do 'Allo 'Allo do que ter de aturar aquele sotaquezinho à Americana. A única série que eu achava muita piada era o Twilight Zone . Algumas vezes até penso que vou acordar e o Rod Sterling vai aparecer e dizer com aquela voz sinistra: "Ela está presa no Twilight Zone..." Mas não, a única coisa que ouço é o toque " poison" do Alice Cooper no meu telemóvel como despertador.
A sério, porque, com tanta magia e tanto mistério e tanto militarismo, bem podiam fazer da minha na Bellanária uma daquelas séries foleiras que só dá à meia-noite, para os miúdos não verem, com bola vermelha e tudo.
É por estas e por outras que eu fico admirada: como é que alguém como a Sra. Irene Plah pode ter permitido que a minha mãe adoptasse a pobre coitada da Tsuna?! A Tsuna, ultimamente tem tido a mania de pôr no siemens dela o toque do D'artacão às sete da manhã. É irritante, para uma rapariga como eu que prefere os Black Sabbath ou os Iron Maiden como despertador...sinceramente, qualquer dia perco a cabeça e ainda arrombo a porta e grito a altos-pulmões: "Porque é que não desligas essa porcaria?! Estou a tentar dormir! " A Tsuna, música ocidental ela só gosta das Spice Girls (devíam chamar-se as Raparigas da Merda) e da Britney Spears ...com tanto mau-gosto, não sei aonde é que as orelhas da Tsunazinha vão parar.
Enfim...como eu estava a dizer, a Rainha das Fadas estava a prender o meu braço com uma das mãos, enquanto que olhava para mim como se eu fosse uma das dançarinas do "Survivor" da Beyoncé.
- Tu...tu és como uma irmã mais velha para a Tsuna...como é que tu deixaste que ela ficasse assim, nas garras de um louco qualquer?! - Ela exclamou muito irritada.
Tenho de confessar: fiquei muito admirada quando ela falou num Inglês fluentíssimo. Arqueei as sobrancelhas, com o orgulho ferido evidente nos meus olhos. Não, ela não podía estar a falar comigo! Eu sou a Miss Responsável, eu, que certifico-me sempre que o telemóvel da Menina Tsuna está sempre com a bateria cheia, eu que vejo se ela tem o lanche todo pronto para a escolinha dela!
- Peço imensas desculpas, minha senhora, mas eu não fiz absolutamente nada de mal para que a Menina Tsuna ficasse assim! Se ela dá conversa a estranhos, a culpa é dela, não minha... - Mordi os lábios, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, quase numa forma disfarçada de mostrar que estava envergonhada. Tinha metido a pata na poça!
A Tia Irene arregalou os olhos, ainda mais irritada do que a própria Senhora Roshini. Apontou com a unha envernizada para mim, como se fosse uma advogada de acusação, mas ao mesmo tempo, a tremer, como se estivesse na Oprah Show:
- A culpa é toda tua, minha menina! Por tua culpa, a minha filhinha está naquele estado...
- Mas que raio é que a minha filha te fez para ficares toda lixada, Irene?! - Exclamou a minha mãe, que até parecía uma mártir, com uma das mãos pintadas com verniz vermelho para o peito.
A Tia Irene esboçou um sorriso sarcástico, enquanto ainda abraçava a filha com um ar extremamente protector.
- Ah, pois claro, quando se trata de defenderes os teus interesses, lábia não te falta, não é Katharina?
- Vais bater, é Irene? Sim, porque nem que um raio me caísse em cima da minha cabecinha linda é que eu deixava que tocasses num único fio de cabelo da minha filha! - A minha mãe quase que arranhava as portas dos cubículos onde estavam os chuveiros.
- Não me provoques, Katharina! - Cuspiu a Tia Irene, que já estava a começar a ficar farta do tom falso que a irmã falava com ela.
De imediato, a Mãe, como é habitual nela (nisso ela e a Serpente de Fogo são iguaizinhas) ficou fora de si.
- Chinesa imunda! - A minha mãe estava toda vermelha, ao gritar em Japonês aquelas mesmíssimas palavras.
E, surpreendentemente, a Tia Irene ficou tão irritada que atirou-se à minha mãe como se fosse uma leoa furiosa a tentar proteger as crias.
- Eu vou-te arrancar essas verrugas todas à dentada! - Berrou a Tia Irene, já com o cabelo negro todo despenteado.
E eu ali, no meio daquela algazarra toda, um pouco embaraçada pelo facto de que as mulheres na minha família eram assim. Palavra que nunca me chateei assim tanto...Será que sou adoptada, como a Tsuna? Pensei, ao levantar um pouco os bordos da saia curta do meu vestido, enquanto olhava com um ar de quem não quer a coisa, para o meu pulso. Não, infelizmente, eu sou tão Von Tifon como a tia Charlotte e a Mãe. Ainda tinha aquela tatuagem no pulso.
Tentei fugir daquela confusão, e dei com a Tsuna, que estava a secar (ainda!) o cabelo lustroso e negro. A imagem reflectida daqueles olhinhos castanhos era tão triste como uma ovelha perdida.
Algumas vezes pergunto-me quem é que teve a ideia peregrina de lhe pôr um nome daqueles, tão infantil e amenininado.
Debruçei-me na borda da banca e lancei-lhe um sorriso:
- Tsuna...tu chamas-te mesmo assim?
Sem que eu desse por isso, ela já se estava a rir.
- Claro que não! Onde é que já se viu uma rapariga chamar-se assim? - Exclamou ela, com uma maturidade estranha para uma miúda de treze anos. - Não, o meu nome completo é Tsukiko Nuan Von Zaubermann...
Revirei os olhos, muito admirada. Nunca imaginara que a Tsuna também tivesse descendência Alemã, mas enfim, o mundo é mesmo pequeno...
- Para uma Chinesa, tens um nome muito multicultural...
- Por favor, Jessica, não digas à Mamã que eu disse-te isto... - Ela corou, muito envergonhada, num fiozinho de voz. - Ela não gosta lá muito que eu fale sobre o meu pai.
Agora estava curiosa...O que é que a Tia Irene (que não é realmente minha tia, mas bem que podía ser) andará a esconder que seja assim tão importante ao ponto de fazer com que a filha diga que o nome dela é Tsuna?! Bom, de qualquer maneira, já me habituei tantas vezes a chamar-lhe de Tsuna que não é agora que vou começar a tratar-lhe por Tsukiko Nuan Von Zaubermann. Contudo, já estava mais que pronta para ir para o salão de baile. Mas eu tenho um bicho-carpinteiro para o mexerico: chamem-me o que quiserem, por mim, acho que era mais preocupação do que meter o bedelho aonde não sou chamada.
Olhei-a conspicuamente.
- Estás com um ar de quem quer contar-me mais alguma coisa... Diz lá, eu não vou ficar passada dos carretos. - Disse, com um ar de quem era mesmo a irmã mais velha dela.
Cabisbaixa, a Tsuna soltou um suspiro, digno daquelas rapariguinhas que se vê nos mesmos filmes antigos Chineses, mas que são todas muito bonitas.
- Não gosto que a Mamã e que a tua Mãe andem a discutir...A culpa é minha por ter sido raptada e de mais ninguém. - Murmurou ela, com pena de si própria.
- Que dizes? A culpa é minha, Tsuna, que sou uma despassarada... - Tentei animá-la, mas nem com o meu riso forçado e embaraçoso ela sorriu. - O que é que se passa?
- Bom... lembras-te daquela noite em que eu só voltei de madrugada e a Imperatriz deu-me um sermão enorme? - Disse ela muito envergonhada.
Acenei com a cabeça, ansiosa por saber mais. Afinal de contas, tratava-se da segurança da minha irmãzinha, e eu também quería saber o que é que se tinha passado para ela voltar como se tivesse ido para sítios que meninas tão pequenas como ela não devem frequentar. Tinha sido há coisa de um mês, mesmo depois do Dia da Magia Negra, quando eu estava muito atarefada com os testes e sempre que chegava ao Château, punha-me a estudar que nem uma doida.
- Foi numa quinta-feira, não foi? - Fez uma leve pausa, ao encarar-me com um ar inocente.
- Sim, tu tens piscina às quintas. - Respondi pensativa, ao imaginar que tipo de coisas é que tinham acontecido à pobre da Tsuna.
- Eu ía telefonar-te, (tu sabes como aquilo é muito longe, fica perto da Vila Enublada) para chamares o Nälden para me dar boleia. A partir das sete e meia nunca há autocarros para a estação de metro, e lá estava eu, enregelada, perto da paragem de autocarro. Quando estava quase a abrir o guarda-chuva para ir para a estação a pé, uma limusina estacionou de repente.
- Que tipo de limusina? - Perguntei, um pouco admirada. Normalmente, os bruxos nunca vão à Vila Enublada. Aquilo fica no meio dos montes, num vale cheio de arvoredo e com um lago perto.
A Tsuna encolheu os ombros.
- Não conheço marcas de carros, nem coisas dessas. Mas era grande e cinzento, com um motorista à frente.
- Conseguiste ver a cara desse homem? - Falei, desta vez na minha língua materna. Estava um pouco cansada de falar no dialecto Bellante do Norte.
A minha irmãzinha abanou de imediato a cabeça.
- Não, estava muito escuro e ainda por cima com a chuva... Tu sabes que na Vila Enublada não há quase electricidade nenhuma. Eles vivem na idade da pedra! - Exclamou a Tsuna, e ao ouvir o que tinha dito, corou muito embaraçada e pôs a mão na boca. - Não devía ter dito isto. Enfim...
Soltei uma fungadela divertida. Parece que a Tsuna está a aprender comigo a ser mais sincera e a não esconder assim tanto os sentimentos dela. Com as mãos apoiadas no queixo e os cotovelos na banca, até parecía que estávamos a cochichar de "bonzões" daquelas revistas foleiras de adolescentes.
- Esse motorista...ele falou contigo?! - Exclamei, um pouco espantada. - Conseguiste ver pela voz se era novo ou velho?
- Não, havía outro homem no assento de trás, com uma boquilha preta a segurar um cigarro. O que estava sentado atrás tinha a janela aberta e chamou-me com uma voz grave, sabes, daquele tipo de voz que se esperaria de um bruxo Japonês. Fiquei muito arrepiada: ele tratou-me por "Tsuna-chan". De repente, reparei que estava a falar em Inglês com um sotaque Espanhol, e não em Bellante, Alemão ou Japonês. Era o Sr. Fixtanea...
Arregalei os olhos, desconfiada.
- Mas o que é que esse velho sacana quería de ti a essas horas?!
- Nada! Ele só pediu-me para que me aproximasse, e eu fiz isso. - Ela respondeu, ofendida, como se eu estivesse a duvidar da palavra dela. - Depois perguntou-me como é que eu estava, e se precisava de boleia...
Cruzei os braços, um pouco chateada. Mas ela não sabe que é perigoso aceitar boleias de tipos esquisitos, quanto mais um velho bruxo como o Fixtanea?! Lancei-lhe um olhar desaprovador:
- Tu não sabes marcar o número do Palácio das Reuniões no telemóvel? Se fosse a ti e visse esse maluco à noite, ainda por cima com chuva, chamava logo a polícia... - Comentei, num tom mais honesto.
- O Sr. Fixtanea não é nenhum Assassino do Amor, Jessica! - Ela respondeu. Contudo, recuperou de imediato a calma, ao corar, um pouco envergonhada. - Ou pelo menos eu pensava que ele não era... Eu estava sozinha, Jessica...
Enquanto se penteava, a minha irmãzinha olhou para mim, pouco à-vontade para falar daquele assunto e acrescentou:
- Fiquei tão contente com a notícia que aceitei com um sorriso na cara... Entrei no carro, ao pé do Sr. Fixtanea, que olhava para mim como se eu fosse neta dele ou qualquer coisa parecida. Era muito mais comfortável do que estar à chuva! Os assentos de couro vermelhos davam uma sensação quente. Cheirava muito a tabaco amargo e seco, e a única luz que havía era um candeeiro à moda antiga, verde-escuro. O motorista pousou o guarda-chuva nos assentos de frente e pôs uma manta nas minhas pernas, o que me soube muito bem depois de estar ao frio com uma ventania horrível. Com a luz, reparei que este tinha uns olhos negros, e o nariz era fino. Parecía ser do lado da família da Avó Murakami. "Com licença, menina". Disse ele em Japonês, num sotaque da Cidade Perdida. A seguir, voltou para os lugares da frente e fez as mudanças.
Soltei um suspiro, frustrada, ainda com os braços cruzados.
- É uma pena que não conheça ninguém da família do lado da Avó.... - Disse eu. Estava a começar a ficar pelos cabelos com tanto mistério! Percuti com os dedos no braço esquerdo. - E o que é que aconteceu depois disso?
Muito assustada, ela engoliu em seco e confessou, numa voz que traía o seu rosto que tentava a todo o custo não parecer nervosa:
- Não sei...
- Não sabes?! Mas se tu te lembras do que é que aconteceu antes do raio do homem acelerar para Shunamari?! - Exclamei, agora verdadeiramente preocupada.
Tsuna bocejou, um pouco cansada. Não era para menos, já eram dez e meia da noite. Nem sei porque é que a convidei para isto, além disso, ela não é praticamente do tipo de miúda que gosta de quebrar barreiras.
- Só me lembro que estava muito contente e a rir que nem uma perdida, depois, adormeci... Lembro-me também de uma música a altos-berros que quase arrebentava-me os tímpanos. Tipo daquelas que se ouve nas discotecas em Cyborg Town...?
Sem querer a minha Mãe olhou para ela, um pouco apreensiva. Porque é que ela tem sempre de se meter nas nossas conversas? A sério, a minha mãe, com aquele cabelo enorme, felpudo, louro e rebelde (o enorme e rebelde são um pouco das características que herdei daquela bruxa com a manía que é a Marylin Monroe) quase que estava fazer-me sufocar, atrás de mim, como se fosse da minha idade, ou um ano mais nova que eu!
- Se calhar é melhor ires embora, Tsunazinha, esta festa vai ser um pouco pesada...
A Serpente de Fogo, com um ar de quem quería fazer pouco da Tsuna, esboçou um sorriso sarcástico, ao olhar com os seus olhos de sereia fora de prazo:
- Não me digas, Katharina, querida...!
Cá para mim, ela até podía tropeçar nos sapatos de salto-alto cor de diamantes e o pézinho dela se transformar num lindo trambolho!
Mal tive tempo para ruminar sobre o que teria acontecido a Tsuna há um mês atrás, porque uma voz nos altifalantes (provavelmente uma mulher do Norte da Bellanária, com um sotaque Eslavo) anunciou:
- É favor as senhoras convidadas e meninas dirigirem-se ao salão onde o Baile de Gala de Natal terá lugar.
Lá, teríamos de esperar pelo misterioso anfitrião que tivera financiado o imenso e opulento baile de solstício de Inverno....