terça-feira, 5 de outubro de 2010

Uma manhã atribulada - Ledi Jessica, a Bruxa do gelo


Estava à espera há muito tempo, e isso punha-me nervosa. Se queres que te diga, aquelas pinturas bellantes tinham-me assustado mais do que os acontecimentos da noite anterior. E, no entanto, estava tudo muito calmo - se ao menos, o quarto fosse frio, vazio e sombrio, sem janelas, poderia-se compreender que eu estivesse com medo. Mas estávamos num quarto luxuoso, cujas lâmpadas e cortinas conseguiam muito bem reflectir a luz diurna que vinha de lá fora. As minhas orelhas conseguiam captar o barulho cristalino de água a correr pelas altas montanhas que cercavam o Vale da Morte.


No chão de mármore verde-claro, estavam ilustradas lindas ninfas, de corpos elegantes, quer verdes cintilantes, quer azuis de safira, quer de ouro, a passearem por entre aveleiras, carvalhos e castanheiros antigos, já de séculos passados. Elas voavam, tal como a minha imaginação, e deixavam que os seus cabelos morenos, ruivos e aloirados, se prolongassem como espirais encaracoladas e fios ricamente esculpidos nas paredes, como pequenas decorações da perfumada suite.


Fadas...Há milénios que elas têm sido as musas e os tesouros perdidos da Bellanária para muitos feiticeiros. Extremamente femininas, elas fazem com que o mais duro e implacável de todos os Bruxos se torne num ser delicado e doce para com as mulheres comuns. Alguns Kolmanatries - os feiticeiros poetas do Norte da Bellanária - dizem que a "Mulher Bellante" é como uma fada: recatada, ela esconde-se atrás de uns arbustos dos matos da Floresta de Cristal, os seus longos cabelos negros a pender deliciosamente, tal como as vinhas no tempo da colheita, sobre as árvores, com um sorriso infantil e inocente. De pele morena, a "...Bilafassabnsair, a Representação da Mãe Bellante..." era igualmente acariciada na barriga e nas traseiras por um feiticeiro com um espelho de obsidiana como escudo e uma lança de safira como arma. A Lua de Mel do Senhor Tezcatlipoca - o tal feiticeiro, de botas pesadas, negras e tão brilhantes como a noite com estrelas - e da Senhora Bilafassabnsair era o tema principal da decoração daquele maravilhoso quarto. O sorriso apaixonado, quase voluptuoso do homem ao pegar nas partes proibidas da mulher, ela a ceder cegamente aos desejos dele com um ar um tanto tímido, mas ao mesmo tempo, encantado, era de meter-me um pouco nojo. Quer dizer, a deusa praticamente se oferecia, com o corpo nu de Vénus renascentista, ocultado pelas aveleiras, pelas vinhas de maracujá e de uvas, rodeada de flores. O homem, com um ar sombrio e impulsionado por uma luxúria impressionante, com os olhos verdes a brilhar, parecia querer ir ainda mais longe do que aquelas brincadeiras. A sua túnica verde-escura, o seu aspecto bélico e masculino contrastavam bastante com a fragilidade e pureza da natureza que rodeava as duas divindades. Enfim, os bruxos têm cá umas manias de pintarem a sua supremacia sobre a natureza. O deus do Destino, que vê e pune todos os Seres Humanos, aquele que simboliza a dualidade e a crueldade humana, a babar-se pela personificação da Mãe Bellanária, pela natureza e pelo amor...!


A suite era ampla, e, no canto esquerdo, a rodearem as portas brancas que davam para o quarto-de-banho, existia uma grande escultura dedicada à deusa Bilafassabnsair e às suas irmãs, Arundahti, Shamanarta, Swertyhina e....e já não me lembro de outras deusas bellantes que possa enunciar. Será a beleza feminina bellante assim tão eterna?... Franzi o sobrolho, céptica, ao pôr os braços cruzados. Eu achava que não.


De um violino e de um piano, saía uma melodia perfumada em pêssego e a cerejas frescas. E como é que um piano e um violino podiam estar a tocar, se não existiam mãos humanas que os suportassem, digam-me lá...? Bem, isso é que eu também não sabia muito bem como havia de o explicar, mas de uma coisa, eu tinha a certeza: o inferno não era!


Senti-me ensonada pela belíssima música, mas tentei resistir à tentação de ouvir mais uma nota... O meu padrasto nunca gostara de mim, porque se daria ao trabalho de me instalar numa câmara como aquela...?


Ao percorrer as portas de cristal da varanda, reparei que estavam fechadas à chave. Tentei fazer um feitiço para as abrir, mas em vão...Aquelas portas estavam mesmo cerradas por um cadeado mágico de ouro. Porquê?! Porque é que me tinham fechado num confortável quarto sem ventilação nas melhores condições?!


Fiquei um pouco curiosa; afinal de contas, lá estava eu num quarto digno de uma suite de hotel, porém, era como se fosse uma prisioneira! Um quarto verde-claro, iluminado, com música ambiente, e um perfume estranho, que me dava uma grande vontade de cair para o lado, sem razão. Ao bater contra as janelas de vidro, vi que também estavam reforçadas com um feitiço. De certeza que lá fora, ninguém me ouviria!


Subitamente, escutei uma risada sinistra:


- Não te preocupes, minha querida Jessica...tudo irá acabar numa questão de minutos!


De imediato, reconheci aquela voz, vinda de não sei onde: o meu Padrasto! Tinha-me atraído para uma armadilha! Aquele homem, do qual eu só tinha ouvido a voz, já me metia medo até à porta dos cabelos ruivos encaracolados! Mesmo assim, tentei ficar calma, não sabendo o que iria acontecer. Entretanto, o violino e o piano começavam a tocar num ritmo alucinante! E a cada nota, mais estranha eu começava a sentir-me. Apercebendo-me do perigo que corria, tentei ver aonde e como é que aquele psicopata me iria matar. Sim, porque ele só poderia estar a falar de morte quando pronunciou o verbo "acabar". Apesar daquilo me dar arrepios na espinha, tentei ver aonde é que vinha aquela sensação. Ao me aproximar do violino e do piano, tudo se tornou mais turvo. Da minha boca, começou a sair uma série de tosses compulsivas e horríveis, secas.


Arregalei os olhos, paralisada de nervos. Gás?! Ele queria matar-me com gás?! Parecia um daqueles filmes de terror horrorosos que normalmente, eu evito a todo o custo. Porque é que aquilo não me espantava...? Que tipo de homem põe cristais de gás no seu violino? O meu padrasto dever ser um desses homens! Pálida de terror, tentei concentrar toda a minha força para criar uma bola de água. Sabia que tinha de ser gelada, senão, os cristais derreteriam facilmente. Tinha de saber a que ponto aquele gás se transformava em gelo, o que seria muito fácil, se ao menos eu soubesse o nome do maldito elemento. Com a minha energia, formei uma bola de gelo para atingir o violino. Com um ar extremamente preocupado, fiz pontaria e atirei a primeira. Após umas três simples bolas de gelo, o gás congelou, formando pequenos flocos brancos a cairem em toda a sala. Parando-os com a minha magia, e arrumando-os com o bloco de gelo, susti a respiração, para formar uma bola de gelo para quebrar as janelas.


Contudo, não conseguia fazê-lo! Estava demasiado fraca. Felizmente, o gás estava concentrafdo numa só massa de gelo, e demorariam alguns minutos para que derretesse. De olhos arregaladeos, ao levantar bem alto o cristal, quase que pronunciava um palavrão. Maldito padrasto! Agora é que ele me tinha deixado furiosa! Como é que alguém poderia armazenar tanto ódio num coração?! Tentei pensar porque raio ele me quereria matar. Porque razão um homem como ele - um homem, já de si poderoso - queria que eu morresse.... Para me silenciar, talvez...Ou se calhar, por puro sadismo! E aquele gás...aquele ambiente....porque diabo teria ele escolhido um ambiente tão agradável...? Quanto mais pensava nisso, mais a ideia que o meu padrasto é um louco persistia na minha cabeça.


De lábios retorcidos, atirei a porcaria da bola para bem longe, causando uma explosão de fumo cor-de-rosa, com manchas amarelas e verdes. Nessa altura, pensei que ia desmaiar, mas o meu corpo era muito mais forte do que eu pensava! Aliviada, descansei a cabeça sobre o corredor da varanda, apreciando as últimas cenas pintadas de cores castanhas e vivas do Outono, que se despedia como um amante se despede da sua amada quando parte para a guerra. Respirando o ar puro da montanha, eu vi que a perversa nuvem de gás tinha igualmente desaparecido com o vento. Nessa altura, fiquei ciente do meu próprio poder. Ajeitei a longa cabeleira ruiva e encaracolada, à medida que punha o meu casaco de malha com um ar decente. Tinha encontrado as minhas roupas, e, agora, os meus olhos verdes brilhavam como se tivessem uma ligeira tonalidade de azul. Com as pernas esticadas e pousadas mesmo na beira da varanda, eu reparei que dois soldados apreciavam a figura das minhas curvas...já para não falar dos meus caracóis. Assim protegida contra o vento, eu assemelhava a uma figura mais nova da minha mãe, embora eu a sempre ache um pouco coquette demais nas poucas fotografias que tenho dela.


Muitas pessoas dizem que sou a cara-chapada da minha mãe, e pelos vistos, aqueles guardas até me confundiram com ela, ao se ajoelharem, num tom muito respeitoso, mas um pouco cobarde. Tirando os chapéus, eles beijaram a terra suja e enlameada, à medida que olhavam para a varanda, assaltados por um estranho nervosismo.


- Prosti nas, prosti nas, Ledi! - Ora mas que incómodo! Revirei os olhos, aborrecida. É que no Vale da Morte, parece que a maior parte das pessoas só fala Russo! Não podiam ao menos aprender um pouco de Bellante?!