segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O quarto de Spiegel....


A luz mal entrava no espaçoso e poeirento quarto, dando um aspecto sinistro aos quadros de antigos bruxos e nazis famosos pela sua infâmia pregados na escuridão, e, pelos seus olhares penetrantres e nada simpáticos pareciam não gostar da presença do seu felpudo amigo. As paredes estavam decoradas com papel de parede com um padrão de pegadas muito adequadas para os sonhos felinos de Spiegel.
Ali estava o nosso pacifíco bichano a dormir na sua cama de dossel preferida com o seu brinquedinho, uma escovinha macia e boa para arranhar, a sofrer dos adenóides, soltando um ressonar muito cómico, que fazia com que os retractos ficassem incomodados, olhando-o com desprezo.
O tenente, olhou ternamente para o bicho pesado e acenou com o indicador, tirando do bolso uma guloseima.
É difícil agradar a este aristocrático e sempre desiludido gato com a mania de se armar em caprichoso, e Nälden sabia isso demasiado bem. Tinha uma pequena recordação na cara como prova que aquele gatão não era para brincadeiras. Uma cicatriz em forma de cruz, um pequeno arranhão como resultado das muitas formas de simpatizar com aquele convençido e preguiçoso sempre a dormir.
Fez um “bsch-bsch” a agitar a goloseima qual orgulhosa bandeira para que o gato, soltando um miado como se dissesse “Eu? Está a falar comigo?” e conseguisse chamar-lhe a atenção.
- Guten Tag, mein Herr
[1] Spiegel! – Disse ele baixinho. – Venha cá, o Onkel[2] Otto tem um bela gominha de caviar e atum para um lindo bichano puro. Se Sua Excelência se portar bem e vir cá para arejarmos um pouco e perdermos o peso, o Onkel Otto dá a bela gominha de caviar e atum a mein Herr Spiegel.
Infelizmente, o “tentador suborno” não resultou e ainda bem que a paciência do nosso amigo tenente é muita. As patas de Spiegel apenas mergulharam preguiçosamente como quatro pedras em areia movediça cada vez mais nos almofadados lençóis.
Ele miou um sonante e convencido bocejo, espreguiçando-se e refastelando-se na cama.
Na penumbra, o rapaz arriscou-se a aproximar-se mais do gato resmungão, desta vez, escondendo a sua mão treinada tanto para dar carícias, como também para ferir com uma faca atrás das costas.
Desta vez, ele iria tentar a diplomacia, e se nem isso nem a ameaça resultasse, então a magia e a violência teriam de responder por ele próprio.
Suspirou com um grande sorriso na cara, olhando para o bichano com um amor incondicional.
Ele ia pôr o gato a falar, era? Ou ia “fazê-lo falar”? Eh, eh, eh...
Baixou-se na sua altura espantosa de um metro e setenta e oito, com os seus olhos azuis um pouco falsos e demonstrando um pouco de desprezo pelo gato.
- Calma, calma, calma! – Exclamou ele entre dentes. – Acima de tudo, tenhamos calma com as nossas respostas, mein Herr Spiegel. Agora faça-me o favor de sair dessa cama antes que nos irritemos a sério!
Aí, o gato lá saiu lentamente do quarto, espreguiçando-se no chão e miando outro audível e estúpido bocejo.
Estava a ver que não, aquele maldito animal qualquer dia ainda vai tirar o pobre do coitado do Nälden do sério.
Tivemos que o levar numa caixa onde ele esperneou, arranhou, mas nem o pior dos gritos conseguiu salvar Sua Majestade de ser arrastada numa caixa negra sem protecção alguma na mala do “tanquezinho” do Nälden. Depois explico o que é essa máquina.
Pelo numa coisa este ignóbil bicho é útil: a fazer com que a nossa maldade sobressaia cada vez mais! Estou a brincar, não, o que eu queria dizer é que algumas vezes, nem nos apercebemos da sorte que temos por não termos vivido naquela altura em que a magia negra era mais forte. Sabes o porquê disso? Porque a luz consegue vencer o pesadelo que é esta guerra civil e este assunto da discriminação entre classes.


[1] Título em Alemão que se refere a ser tratado por “Meu senhor”, e que em Português é “Meu senhor” utilizado para se referir a um homem da nobreza ou a um lorde. Quem diria que até um gato teria sangue azul...?
[2] Tio em Alemão

2 comentários:

Jotacarlos. disse...

Fico a imaginar como seriam os sonhos felinos: os gatos posuem uma sensibilidade aguçada.
Tenho um cadela que sonha muito, e pelo que vejo, não é coisa boa.
Muito bom. Passarei mais por aqui.

Um grande abraço.

Arthurius Maximus disse...

Gatos sempre foram associados a magia. Talvez, se olharmos fixamente em seus olhos, veremos aquela chama mágica que tanto medo causava em nossos ancestrais.