quarta-feira, 6 de junho de 2012

Um café com canela às sete da manhã...

Diário da Jessica Von Tifon 


12 de Março de 2005



Ao ver que o dono não estava a olhar para nós, decidi contar ao velho Duque Von Tifon (por mais difícil que te custe a acreditar, prefiro tratar-lhe por “Sie”, ou por “Avô” do que pelo título dele, já o conheço quando ele estava disfarçado,  e faço uma leve – mesmo leve, porque nunca sabe com a minha família – ideia de como é que ele é, uns meses e a marca de nascença davam-me os palpites suficientes para perceber que podia tratá-lo familiarmente) porque é que estava sozinha, principalmente num feriado.

Entretanto, ele começou a fumar, ao ouvir, com a maior das paciências o que se tivera passado quando eu vi o Heydrich – numa visão – pela última vez. O meu avô não ficou nada surpreendido com os meus talentos para a magia.

«A princípio pensei que era um pesadelo mas não é possível: o senhor sabe tão bem como eu que eu adoro estudar Introdução a Matemática Aplicada à Magia Universal. Nunca iria adormecer na secretária! A Sara não parecia estar assim tão certa do que estava a fazer, mas o Pedro, ele queria mesmo beijá-la…Nesse momento, senti uma vontade enorme de matá-lo! Lá estava ele, a beijar outra mulher…E eu sem poder fazer nada! E eu que pensava que o Pedro era do tipo que só andava com uma miúda de cada vez. Depois disso, a pobre da Sara fugiu dele, com as lágrimas no rosto. Foi aí que o Heydrich encontrou-a…» As lágrimas cairam lentamente dos meus olhos. Parva, que figura ridícula que eu estava a fazer, no entanto, não conseguia evitar que as mãos tremessem. Quem me dera que pudesse deitar a porcaria da chávena do café para o chão. Ao menos teria algo com que descarregar…

Porém, o meu avô estava mais frio do que se não estivesse a chover. Eu sei perfeitamente que ele adora o mau-tempo. Acha romântica a trovoada, embora Março não seja lá muito a altura certa para aguaceiro. Nunca gostei de ver o fumo a enrolar-se por volta do corpo do Fixtanea (melhor do meu avô) até que só é possível ver-lhe os olhos, cinzentos e brilhantes. Faz com que eu fique com arrepios…!

Contei-lhe também o sítio, que era numa rua estreita e com umas flores amarelas…

- Em que rua de Cyborg Town? – Perguntou asperamente o meu avô, com os olhos menos suaves do que nos minutos anteriores.

- Não sei! – Encolhi uma vez mais os ombros, sem coragem de enfrentar o Avô nos olhos. Tinha de confessar: era o mesmo olhar que eu tinha visto no seu auto-retrato no Castelo Negro, naquele Dia da Magia Negra. – Devia ser antiga mas era muito larga, com uma placa a dizer qualquer coisa em Bellante Arcaico.

- A antiga Avenida dos Vitoriosos…Lembro-me que foi posta em ruínas em ‘78 para construírem uma auto-estrada lá. É antiga, mas não tanto como a velha Lisaiten. – Comentou a voz grave e rouca do meu avô, enquanto expelia mais um pouco de fumo para o ar, indiferente, nada admirado pelo meu olhar curioso. – Era o nome Japonês para Losjafhden.

Franzi o sobrolho muito desconfiada.

- Desculpe lá por estar a interromper, mas…Eu sou um bocado má em História Nacional…De que Avenida dos Vitoriosos é que o Avô está a falar…? – Comentei num tom confuso. – Se  bem me lembro das aulas ela foi restaurada em 1956 depois da guerra…E a estrada onde eu estava ficava do outro lado do rio…!

O meu avô lançou-me um olhar amargo ao deitar num gesto quase automático as cinzas do cigarro de hortelã-pimenta para o cinzeiro.

- Eu estou a falar de 1878, quando a tua mãe nem sequer era nascida, Jessica.  Nem tu, nem a Sara, reconheceriam o lugar. A Avenida dos Vitoriosos…um nome que foi manchado pela imitação barata e desprezível que os Russos fizeram deste lado do Bênção!

As palavras do meu avô sairam-me da boca, ao recordar-me de uma vez ler uma espécie de crónica que ele tinha feito sobre Cyborg Town e arredores:

- “Quando vi a destruição da velha Lisaiten, o lugar que o pobre Ishikawa Rokurou tinha ajudado a reconstruir através do valor da recompensa que o Imperador lhe ofereceu, senti-me impotente. Lá estavam eles a arruinar o verdadeiro espírito de Cyborg Town e eu sem poder fazer nada!” – Ao acabar a frase, eu fiquei um pouco arrepiada. – Avô…será que alguém manipulou o Pedro para que ele fizesse o que fez? Isso não significaria um duplo insulto a um descendente de um dos Guardiães?

Abateu-se um silêncio de cortar à faca na Doçaria Madrid. O dono não dizia palavra, muito menos eu. Uma mistura de sensações inundaram a minha mente: repulsa, medo, fascínio, admiração…atracção!  Ali estava um homem que tivera sido em tempos um guerreiro…e pela cara, reflectida nas paredes espelho do café, não parecia ter enferrujado. Era mais um tigre, enjaulado, só à espera do momento certo para atacar. Então fora essa a sensação que tivera percorrido o meu coração quando conheci-o.

Embora a música do disco de vinil de Marlene Dietrich estivesse a tocar como se o tempo não tivesse passado, eu sentia que o vibrador do meu telemóvel estava a fazer cócegas nas minhas pernas. Os carros, modernos e pintados com cores resplandecentes passavam na rua molhada e enublada com uma velocidade estonteante, como fantasmas. Só pedia aos Deuses que não fosse o Pedro!

O outrora e futuro Duque da Cidade Perdida (pelo andar que as coisas vão, tenho a ligeira sensação que o Wilhelm não vai ficar no seu trono de Duque durante muito tempo) acabou o cigarro. O seu olhar era ríspido enquanto se levantava da cadeira. As mãos compridas e enrugadas tinham deixado dois Fenixinianos pelos dois cafés. Porém, ao mesmo tempo, eu tinha a ligeira sensação que ele escondia algo mais dentro do sobretudo do que a carteira, algo longo e letal, embainhado num estojo de couro preto.

- Pensa o que quiseres, Jessica. No entanto, se eu vir esse metade humano a aproximar-se de ti mais uma vez que seja…  

O movimento foi tão rápido que eu quase tive de usar a cadeira para proteger o meu querido telemóvel! As aulas de karaté ainda estão um pouco vívidas na minha memória, e a adrenalina de combater com alguém mais forte do que eu fez com que gotas de suor frio caissem da minha testa, agora com o cabelo ruivo despenteado. Eu sei que o meu avô não me queria magoar…mas ele desfizera as duas moedas de cobre em quatro!

O dono do café arregalou os olhos, meio escondido atrás do balcão. Tão depressa como tinha aparecido,  a lâmina afiada do meu avô escondeu-se (como uma serpente) no sobretudo preto e resistente.

- Não se preocupe, meu bom homem. – Disse o meu avô num tom mais cortês. Atirou-lhe três notas de trinta Fenixninians até ao balcão. – Isto é o suficiente para cobrir os estragos?

- Chega e sobra, Vossa Senhoria, Sr. Von Tifon! – Gaguejou o dono, enquanto agarrava nos noventa Fenixninians como se fossem três botes salva-vidas.  

Eu revirei os olhos, ao ver naquele homem o mafioso Grão-Mestre da Irmandade do Tigre Azul, espelhado nos vidros turvos das janelas do café.   

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