Diário da Jessica Von Tifon
12 de Março de 2005
Ao ver que o dono não estava a olhar para nós, decidi contar
ao velho Duque Von Tifon (por mais difícil que te custe a acreditar, prefiro
tratar-lhe por “Sie”, ou por “Avô” do que pelo título dele, já o conheço quando
ele estava disfarçado, e faço uma leve –
mesmo leve, porque nunca sabe com a minha
família – ideia de como é que ele é, uns meses e a marca de nascença
davam-me os palpites suficientes para perceber que podia tratá-lo
familiarmente) porque é que estava sozinha, principalmente num feriado.
Entretanto, ele começou a fumar, ao ouvir, com a maior das
paciências o que se tivera passado quando eu vi o Heydrich – numa visão – pela última
vez. O meu avô não ficou nada surpreendido com os meus talentos para a magia.
«A princípio pensei que era um pesadelo mas não é possível:
o senhor sabe tão bem como eu que eu adoro estudar Introdução a Matemática
Aplicada à Magia Universal. Nunca iria adormecer na secretária! A Sara não
parecia estar assim tão certa do que estava a fazer, mas o Pedro, ele queria
mesmo beijá-la…Nesse momento, senti uma vontade enorme de matá-lo! Lá estava
ele, a beijar outra mulher…E eu sem poder fazer nada! E eu que pensava que o
Pedro era do tipo que só andava com uma miúda de cada vez. Depois disso, a
pobre da Sara fugiu dele, com as lágrimas no rosto. Foi aí que o Heydrich
encontrou-a…» As lágrimas cairam lentamente dos meus olhos. Parva, que figura
ridícula que eu estava a fazer, no entanto, não conseguia evitar que as mãos
tremessem. Quem me dera que pudesse deitar a porcaria da chávena do café para o
chão. Ao menos teria algo com que descarregar…
Porém, o meu avô estava mais frio do que se não estivesse a
chover. Eu sei perfeitamente que ele adora o mau-tempo. Acha romântica a
trovoada, embora Março não seja lá muito a altura certa para aguaceiro. Nunca
gostei de ver o fumo a enrolar-se por volta do corpo do Fixtanea (melhor do meu
avô) até que só é possível ver-lhe os olhos, cinzentos e brilhantes. Faz com
que eu fique com arrepios…!
Contei-lhe também o sítio, que era numa rua estreita e com
umas flores amarelas…
- Em que rua de Cyborg Town? – Perguntou asperamente o meu
avô, com os olhos menos suaves do que nos minutos anteriores.
- Não sei! – Encolhi uma vez mais os ombros, sem coragem de
enfrentar o Avô nos olhos. Tinha de confessar: era o mesmo olhar que eu tinha
visto no seu auto-retrato no Castelo Negro, naquele Dia da Magia Negra. – Devia
ser antiga mas era muito larga, com uma placa a dizer qualquer coisa em
Bellante Arcaico.
- A antiga Avenida dos Vitoriosos…Lembro-me que foi posta em
ruínas em ‘78 para construírem uma auto-estrada lá. É antiga, mas não tanto
como a velha Lisaiten. – Comentou a voz grave e rouca do meu avô, enquanto
expelia mais um pouco de fumo para o ar, indiferente, nada admirado pelo meu
olhar curioso. – Era o nome Japonês para Losjafhden.
Franzi o sobrolho muito desconfiada.
- Desculpe lá por estar a interromper, mas…Eu sou um bocado
má em História Nacional…De que Avenida dos Vitoriosos é que o Avô está a falar…?
– Comentei num tom confuso. – Se bem me
lembro das aulas ela foi restaurada em 1956 depois da guerra…E a estrada onde
eu estava ficava do outro lado do rio…!
O meu avô lançou-me um olhar amargo ao deitar num gesto
quase automático as cinzas do cigarro de hortelã-pimenta para o cinzeiro.
- Eu estou a falar de 1878, quando a tua mãe nem sequer era
nascida, Jessica. Nem tu, nem a Sara,
reconheceriam o lugar. A Avenida dos Vitoriosos…um nome que foi manchado pela
imitação barata e desprezível que os Russos fizeram deste lado do Bênção!
As palavras do meu avô sairam-me da boca, ao recordar-me de
uma vez ler uma espécie de crónica que ele tinha feito sobre Cyborg Town e
arredores:
- “Quando vi a destruição da velha Lisaiten, o lugar que o
pobre Ishikawa Rokurou tinha ajudado a reconstruir através do valor da
recompensa que o Imperador lhe ofereceu, senti-me impotente. Lá estavam eles a arruinar
o verdadeiro espírito de Cyborg Town e eu sem poder fazer nada!” – Ao acabar a
frase, eu fiquei um pouco arrepiada. – Avô…será que alguém manipulou o Pedro
para que ele fizesse o que fez? Isso não significaria um duplo insulto a um descendente
de um dos Guardiães?
Abateu-se um silêncio de cortar à faca na Doçaria Madrid. O
dono não dizia palavra, muito menos eu. Uma mistura de sensações inundaram a
minha mente: repulsa, medo, fascínio, admiração…atracção! Ali estava um homem que tivera sido em tempos
um guerreiro…e pela cara, reflectida nas paredes espelho do café, não parecia
ter enferrujado. Era mais um tigre, enjaulado, só à espera do momento certo
para atacar. Então fora essa a sensação que tivera percorrido o meu coração
quando conheci-o.
Embora a música do disco de vinil de Marlene Dietrich
estivesse a tocar como se o tempo não tivesse passado, eu sentia que o vibrador
do meu telemóvel estava a fazer cócegas nas minhas pernas. Os carros, modernos
e pintados com cores resplandecentes passavam na rua molhada e enublada com uma
velocidade estonteante, como fantasmas. Só pedia aos Deuses que não fosse o
Pedro!
O outrora e futuro Duque da Cidade Perdida (pelo andar que
as coisas vão, tenho a ligeira sensação que o Wilhelm não vai ficar no seu
trono de Duque durante muito tempo) acabou o cigarro. O seu olhar era ríspido
enquanto se levantava da cadeira. As mãos compridas e enrugadas tinham deixado
dois Fenixinianos pelos dois cafés. Porém, ao mesmo tempo, eu tinha a ligeira
sensação que ele escondia algo mais dentro do sobretudo do que a carteira, algo
longo e letal, embainhado num estojo de couro preto.
- Pensa o que quiseres, Jessica. No entanto, se eu vir esse
metade humano a aproximar-se de ti mais uma vez que seja…
O movimento foi tão rápido que eu quase tive de usar a
cadeira para proteger o meu querido telemóvel! As aulas de karaté ainda estão
um pouco vívidas na minha memória, e a adrenalina de combater com alguém mais
forte do que eu fez com que gotas de suor frio caissem da minha testa, agora
com o cabelo ruivo despenteado. Eu sei que o meu avô não me queria magoar…mas
ele desfizera as duas moedas de cobre em quatro!
O dono do café arregalou os olhos, meio escondido atrás do
balcão. Tão depressa como tinha aparecido,
a lâmina afiada do meu avô escondeu-se (como uma serpente) no sobretudo
preto e resistente.
- Não se preocupe, meu bom homem. – Disse o meu avô num tom
mais cortês. Atirou-lhe três notas de trinta Fenixninians até ao balcão. – Isto
é o suficiente para cobrir os estragos?
- Chega e sobra, Vossa Senhoria, Sr. Von Tifon! – Gaguejou o
dono, enquanto agarrava nos noventa Fenixninians como se fossem três botes
salva-vidas.
Eu revirei os olhos, ao ver naquele homem o mafioso
Grão-Mestre da Irmandade do Tigre Azul, espelhado nos vidros turvos das janelas
do café.
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