terça-feira, 20 de novembro de 2012

A língua dos Bruxos: Bellante do Norte

              
13 de Novembro, de 2004



 Falando em pessoas irritantes, a biblioteca não é exactamente o lugar perfeito para trabalhar. primeiro, as raparigas lá não param de falar, mesmo que seja um local de trabalho, segundo, não consigo perceber uma única palavra do que dizem. Ainda bem que tenho o Daisuke para me alegrar! Sabes o tipo do Café? Parece que ele é um dos meus primos do lado da minha bisavó. Ele é neto do meu tio-bisavô, que pelas poucas palavras que percebo do dialecto de Shunamari dele, ainda está vivo.  Para além de estarmos com os meus phones - para não ouvirmos as histéricas das raparigas das secundárias de Cyborg Town - a ouvir os Iron Maiden, ele ajuda-me a ter paciência com o computador.

O computador é uma lentidão, o que torna o trabalho ainda mais difícil. O meu professor de Bellante Arcaico do Norte mandou-me pesquisar "as semelhanças entre o Japonês Arcaico e o Bellante Arcaico do Norte" como trabalho de casa. Mas com esta lesma, vai ser mais fácil eu falar do sotaque arrevessado dele em Inglês do que de uma língua que só os velhotes de Shunamari e de Cyborg Town sabem falar. É mais por causa do Daisuke que estou a fazer isto. 

As raparigas não paravam de falar. Era como se não tivessem mais nada do que fazer a não ser rirem a bandeiras desbragadas!  A coca-cola caiu-me um pouco mal na garganta. Demasiado fria para o meu aparelho dos dentes. Era como se o tipo que arranjara a bebida tinha ido buscar um pouco de gelo da sarjeta lá na rua de Cyborg Town.

Enquanto o Daisuke explicava-me um pouco sobre o antigo dialecto de Osaka falado no século sexto, eu perguntei-me se ele era assim tão novo quanto eu pensava.

Ele suspirou, ao apontar para o indíce do livro. Falava sobre os últimos séculos antes do Tratado da Magia Universal, e como o Bellante do Norte fora influenciado com estrangeirismos Russos.

- Não sou assim tão velho quanto a maior parte dos Feiticeiros Demoníacos, só tenho  oitenta e cinco anos! - Exclamou ele, um pouco triste. 

- Não pareces assim tão velho! - Sorri num tom de brincadeira. Não acreditava que ele tivesse aquela idade.

- Não sabes? - Arregalou os olhos, um pouco surpreendido. - Os da tribo dos Youkai envelhecem muito mais tarde, ao ingerirem órgãos humanos.

Como é que eu podia saber...? Nunca soube qual era a diferença entre um feiticeiro humano, um feiticeiro demoníaco, um bruxo e um feiticeiro branco! Fiquei curiosa com essa palavra nova...De certeza que era um empréstimo do Japonês.

Ao pôr, estranhada, as mãos na mesa, eu arregalei muito os olhos:

- Ser-se bruxo e um feiticeiro demoníaco não é a mesma coisa?

Ele sorriu e consegui ver, no reflexo negro do chocolate quente, cercado de vapor quente e perfumado com canela, dois dentes caninos e grandes a crescerem dos lábios do meu louco primo. Com o cabelo rapado e pintado de roxo do lado direito e preto natural do esquerdo, os piercings nas orelhas pontiagudas, não me admirava nada que as raparigas lá da biblioteca perguntassem o que é que uma "maria-rapaz" como eu fazia com aquele pão delicioso.  

- É claro que não...! Pode-se ser ambos, mas não é a mesma coisa...! Eu, por exemplo, sou um Kolmanatry, um feiticeiro demoníaco e um cy-bata ao mesmo tempo. Sou um feiticeiro, de sangue de Youkais, artista (é isso o que significa a palavra Kolmanatry - "artista excêntrico").

- Isso percebo eu! - Ri-me, com uma ponta de troça na voz, com as unhas perfumadas com cerejas ainda na coca-cola. Aquelas palermas bem que queriam estar no meu lugar, a falar com o docinho do Daisuke. Tenho de admitir, ele sabe falar Inglês. O sotaque fica-lhe tão bem com o sorriso maroto demoníaco e os piercings na língua.  

Deu-me uma palmadinha nas calças militares.

- Vá lá, prima, não sejas marota!  - Riu-se, ao retornar ao Alemão, língua que se sente mais à vontade. Pigarriou. Acho que é um pouco difícil para ele fingir ser velho. O Daisuke é o que uma pessoa chama de "jovem por dentro". - Bom, Youkai não é exactamente demónio! Pode ser um sinónimo de "espírito sobrenatural", "fantasma", "aparição"...Basicamente é uma criatura que normalmente a razão humana não consegue explicar.  A palavra Kätrtzyaamnahuatli ("bruxo" no Bellante Padrão)  joga com a pronúncia do nome Di Euncätzio. Mas também não é "feiticeiro demoníaco".

Ao desenhar com um pedaço de chocolate seco, ele apontou-me os carácteres "formais" em Bellante do Norte para "bruxo", "youkai", "feiticeiro demoníaco".  Eram completamente diferentes dos dois ideogramas que se utiliza para dizer o nome "Di Euncätzio".

- Como vês, no Norte ainda é tabu escrever o nome Di Euncätzio. Quando procurares por obras do "Mestre Samiel", de Onisamatzeka, ou do "Mestre Saburou", tenta ver os pseudónimos deles. - Avisou, num tom demasiado sério para que eu risse da situação.

- Mas...por que é que é proíbido...? São só um monte de rabiscos velhos...! - Repliquei, um pouco admirada com o talento e cuidado com que ele escrevia com o chocolate.

Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, o meu primo pousou a mão nos meus lábios.

- Estou a usar o chocolate, porque é sagrado...Sabes o provérbio "falas no Diabo e ele aparece"? As palavras em Bellante Arcaico do Norte não eram só caracteres, como acontece com os Kanji ou os Hiragana em Japonês. Faziam parte da magia e dos feitiços dos Bruxos! - Exclamou, num murmurar, como se a mera enunciação da antiga língua dos Bruxos fosse algo perigoso!

Tão rápido quanto pusera as mãos nos meus lábios, ele retirou-as, num gesto delicado.  Suspirei, um pouco apanhada de surpresa. O Daisuke, ao contrário do que a Sara me contara sobre ele, cheirava bem.  Tinha acabado de trabalhar na "Senhora Diamante". Parecia que os anos do pós-guerra tinham-no amadurecido, ou pelo menos, segundo a minha mãe "aceitar aquilo que é nascer num pântano e tornar-se numa flor de lótus".

É que o Daisuke, pelos vistos, antes da Segunda Guerra, era muito infantil. Depois, foi forçado a fugir para Hong Kong. Uma vez que ninguém associava-o, nem com o avô Hyasuko Murakami (depois conto-te sobre o meu Tio-Bisavô) , nem com o Duque Von Tifon (sabe-se lá porquê),  ele começou a tocar músicas ocidentais como ganha-pão, em clubes-nocturnos. Pode-se dizer que o meu primo "comeu o pão que o Diabo amassou"...mas, como o meu primo é filho de um cyborg, não vou utilizar esta expressão. Como o pai do meu primo foi concebido já é outra história. E como nós os Ingleses já não acreditávamos muito em Bruxas - quanto mais em "ogres", que foi a tradução mais à "ocidental" que o Daisuke arranjou na altura para explicar o que lhe acontecera, sendo ele neto de um Oni - ele lá conseguia arranjar dinheiro para comprar arroz. De repente, conseguiu arranjar um contracto com uma misteriosa companhia discográfica Japonesa, que apostava no moderno "rock" ocidental, lá para os Anos 60, ele começou a vender discos na Bellanária do Sul (aquilo que não era ocupado pelos "Diabos Comunistas", como disse a minha mãe), em Osaca e inclusive (por esta eu fiquei boquiaberta) Tóquio!

Por isso, ao acabar o seu chocolate-quente (que, por esta altura já era um gelado de chocolate do que outra coisa), o Daisuke disse que preferia esta vida de artista do que dedicar-se à profissão de feiticeiro demoníaco, que, tal como eu vira, era muito perigosa hoje em dia.

- Então, isso quer dizer que a tua personna no palco e tu na vida real são completamente diferentes? - Perguntei, muito surpreendida. Ah, eu sei perfeitamente que os metaleiros e os rockeiros são muito diferentes na vida real.

- Sim...Eu vivo uma vida simples. Não gosto que as pessoas comparem o meu "eu" artístico com o meu "eu" pessoal. O vocalista dos Kilresy com a boina preta é diferente do Duque Von Tifon ou de Kensaku Murakami...é uma caricatura dos Bruxos! - Disse num tom muito sério. - Vamos lá ver o que mais interessa: os seis elementos Bellantes, podes enunciar as diferenças no Bellante Arcaico do Norte e o Japonês Antigo.

Estava a tentar perceber a diferença entre o carácter Japonês para "água" e o homólogo em Bellante do Norte, quando lembrei-me do anel que supostamente devia proteger-me da Magia Negra. Este anel tinha aquilo que em Bellante do Norte se poderia ler como "Terra, Água, Fogo, Ar e Luz, Victória!" Então era por isso que não tinha sortido efeito. Tezcatlipoca esquecera-se da Escuridão. Mas também havia outra coisa que tinha o símbolo da água, num carácter em Chinês: um pendente de jade em forma de um arco, que a Tsuna traz sempre agora ao pescoço.


Ao ler os meus pensamentos, o Daisuke suspirou.


- É normal...A maior parte das Fadas costumam usar esses talismãs simbólicos que representam a tribo (neste caso uma ondina) e a classe a que pertencem. - Subitamente, ele apercebeu-se de quem é que eu que eu estava a falar. Quase que cuspia o segundo chocolate quente! - Mas tu estás a dizer que a viste com um pendentes desses ao pescoço?!


- É esquisito, não é? A Tsuna, a protegida da minha mãe a usar um pendente usado por Fadas! - Disse eu, ainda muito surpreendida com tudo aquilo.


- Não é esquisito se fores filha de uma feiticeira humana como a Tsuna! - Comentou o Daisuke, com o sobrolho carregado, ao tentar anotar o carácter Chinês para "água" na agenda. - E eu que pensava que a arte de trabalhar metais para que se transformem em amuletos poderosos já tinha desaparecido! Quem quer que tenha oferecido esse pendente à Tsuna, sabia que a prima Katarina não é boa-rês!  A maior parte dos Bruxos demoníacos odeia os Feiticeiros Humanos por causa do que lhes fizeram nos últimos séculos...Talvez a prima Katarina tenha herdado esse ódio do Trisavô! Eu ainda nem era nascido quando a Magia foi proíbida no Japão...!


- Bom, esse pendente só apareceu depois do dia da Magia Negra, no correio. - Confessei, um pouco apreensiva com a minha "irmã emprestada".  - Depois da festa do Halloween, não a vi!


O Daisuke olhou um pouco para mim, depois fez uma cara de quem estava muito assustado, como se tivesse recordado de um velho pesadelo. E eu que julgava que a minha mãe era uma santa!  Não me admirava nada que ele estivesse preocupado: a minha mãe pelos quadros está sempre com um ar de....pronto de uma mulher fácil. O retracto do meu avô, porém, aparecia-me na memória como algo majestoso, orgulhoso...Nunca malvado!  Mas também sei tão pouco sobre a minha família...! Só estou cá há uns meses...Parece-me mal falar do Daisuke como "Tio".  Eu trato-o por "tu", e ele parece gostar de mim, embora sinta-se pouco à-vontade para falar da família.


Depois da explicação, ao pagar o dinheiro, tanto da minha coca-cola como das duas canecas de chocolate-quente, ele pousou o casaco de couro nos ombros, como se estivesse a sugerir que eu viesse com ele. Os olhos dele pareciam tão queridos ao olharem para mim...!


- Tens a certeza que não queres que te dê boleia...? Se alguém conseguiu manipular a Tsuna e quebrar o feitiço, tanto do teu anel como do pendente dela, então é porque é um bruxo muito poderoso!

Eu disse que não, que sabia defender-me sozinha...Mal sabia eu o que é que estava para me acontecer naquela tarde...!

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