sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Os Sussurros Di Euncätzio

Bolas, que isto é longo... Escrever na primeira pessoa - especialemente com o Duque Adrian Demetrius Von Tifon - é um desafio. Eu gostava de estabelecer o facto dos Sussurros. Embora eles sejam uma grande causa para vários desastres no reino mágico da Bellanária, o Duque não é das pessoas que se deixa influenciar mais por esta maldição. Se houvesse uma lista dos descendentes dos Di Euncätzio que são quase possuídos pela maldição, o Ryuketsu e o Qing estariam nos primeiros cinco, logo com a Kato Misato e a Baronesa Lyubova Lavrentyeva..Pensando bem, o Qing nunca destruíu uma civilização cidade estado inteira...


Os Sussurros  

"Num sentido, a minha irmã nunca tinha os pesadelos. Ela não passava as noites em branco, a tocar o cravo., no meio da biblioteca; a meio de afastar os sonhos, os sonhos sangrentos!

Não sei se há alguém que esteja a ler isto, mas se for um descendente Di Euncätzio, a partir dos oito anos, há uma coisa que nos acontece, pelo menos uma vez por mês, quando o mais profundo do inconsciente humano se refugia no espírito, no trascendental. 

Os Sussurros Di Euncätzio assaltaram os meus sentidos desde que eu era um miúdo.  Pode acontecer até quando estamos de pé. Ouvimos uma voz a troçar da nossa condição Humana.  Quando um homem fala connosco.  Os Sussurros são uma parte espiritual de uma maldição, se bem que pareça mental às vezes. Estudei durante décadas para encontrar uma equivalente às doenças modernas, mas não há. Os Sussurros são tão pessoais que uma pessoa diria que quem quer que fosse que teria criado aquela maldição, esse alguém não podía ser Humano. 

Num sentido, a minha irmã nunca tinha os pesadelos. Ela não passava as noites em brancos, a tocar o cravo no meio da biblioteca; a meio de afastar os sonhos, os sonhos sangrentos! Simplesmente, nós nunca falávamos sobre os Sussurros! Eles não aconteciam, ponto final!  Mas eles aconteciam. E eu conseguía ouvir os risos da minha irmã. Talvez porque Ryuketsu se tivesse apoderado do corpo dela. Talvez porque Saburou tivesse feito isso. Não sei. Eu tinha medo. Tinha medo, mas nunca falava disso com os meus irmãos.

Os avisos da minha Mãe sobre os perigos desta maldição ecooam nas memórias. Há centenas, há mais de mil e quinhentos anos, Saburou e Yasunori, furiosos com a situação vergonhosa da família, amldiçoaram todos os seus descendentes e membros da família - até mesmo a cunhada - a viverem atormentados pelos espíritos dos antepassados. A maldição cresce a cada geração. Quando um Di Euncätzio, quando uma pessoa com o meu sangue morre, esse alguém - a alma dessa pessoa - é agarrada pelos fantasmas de mais de dois mil anos de ódio e raiva.  

Não importa o medo, a raiva, a tristeza que a pessoa, o ser-humano, o Cy-bata tenha dentro de si. Os Sussurros Di Euncätzio amplificam as nossas emoções.  Dou graças por ter uma Mãe que era uma yuki-onna, uma deusa da neve. Essa parte do meu sangue, o sangue Murakami, luta constantemente contra o Di Euncätzio. É verdade que tenho uma parte Von Tifon. E é o sangue do antigo Deus das Tempestades que faz com que aqueles idiotas não tenham o menor controlo sobre mim.  

Eu sei a história, a triste história de como Saburou e Yasunori perderam a sua humanidade. Com ela, os dois irmãos destruíram uma civilização inteira

Esta não é uma história em que os pequenos heróis derrotam os maus. O mal de Saburou, de "Samiel", de Yasunori não é um mal que se possa ser derrotado com espadas ou a fé num deus. Vingança, ódio mútuo, ambição desmesurada, luxúria...Todos esses defeitos os irmãos Di Euncätzio tinham. As Crónicas da Lógica e da Loucura são narradas pelo próprio Saburou, nos seus poucos episódios de saúde mental.   A doença que se viria a aproveitar dos defeitos Humanos , a maldição, chamem-lhe o que quiserem, mas algo que força três irmãos a tentarem destruírem uma cidade com mais de um milhão de habitantes não pode ser algo deste mundo. Ou talvez seja. 

Eu nunca odiei o velho que era o meu Pai. Pelo contrário, eu gostava muito dele. Aqueles olhos azuis, cinzentos, com um ar calmo, observavam-me com admiração e orgulho.  Ele era, em tudo, Humano.  O kimono escuro, azulado, pendía daquele corpo magro, pálido. O Pai já não tinha cabelo quando eu era um adolescente, nem um único fio branco. Ele andava apenas com os kimonos que a Mãe lhe fazía, e isso era a única coisa importante para ele. Ele não era o verdadeiro Duque. Não, essa honra ainda pertencía ao meu Avô.

Mas! Mas! Aquele olhar tão humano, tão doce, tão inocente, tão idiota, fazia-me ficar roxo de vergonha. Como é que eu - um senhor da mais alta estirpe, podía ter como Pai um homem fraco, caquético? Não era pelo dinheiro, oh não! Eu já tinha o meu futuro assegurado! Tenho-o, sempre tive!  

A ganância nunca foi um dos meus defeitos.  Mas as vozes - oh, as vozes infernais! - davam razão à minha vergonha. Diziam que eu nunca poderia ser filho de um Humano!  

- Adrian Demetrius?  

Olhei para a criatura eternamente bela que era a minha Mãe.  Aquela mulher que me dera tudo, desde o próprio leite materno até abraços e carinhos sem fim.  Os cabelos compridos que caíam até à borda do kimono verde-escuro, era como uma torrente de obsidiana. O seu nariz com um bico aquilino, os seus olhos glaciais, inexpressivos,  o seu perfume a magnólias e a lavanda - tudo nela me envolvía.  

Estavamos a comer. Pois... Suspirei.   

Que criatura mais gananciosa! As vozes diziam. Ela está a manipular o cobarde do teu Pai.

Por uns momentos, ignorei as vozes.  Oh sim, eu iria ignorá-las!   

- Adrian Demetrius? - O meu Pai perguntou-me, com os olhos cinzentos, vidrados, a cara pálida. Perguntava-me como é que o Pai teria feito cinco filhos como eu, a Lorelei, o Karl, o Maximilian e a Cecilie.  Ele tinha um ar tão doente, com as suas crises de tosse convulsa, os seus tremores, as febres e a constante respiração aguda, defeituosa.

As órbitas cinzentas, sem expressão, olharam uma vez mais para mim: 

- Adrian Demetrius! - A minha Mãe estava perplexa com o silêncio. 
  
- Mil perdões, Mãe. Só estava a perguntar-me quando é que a Lorelei e a Cecilie irão voltar do tal externato em Shunrasen. 

- Adrian...Eu sei que pode parecer que estamos a mimar as tuas irmãs por oferecermos-lhe um ambiente diferente deste ducado assombrado por fantasmas ...e por...Por! Por coisas como eu, mas eu asseguro-te, Adrian! O Karl não consegue defender o castelo sozinho. De todos os nossos filhos, tu és, a seguir à Lorelei, aquele que controla melhor o sangue e os poderes...Também és dos cinco que consegues controlar os Sussurros Di Euncätzio.   

Isso era verade. Eu sou dos cinco irmãos o que melhor controla o sangue Youkai, e aquela fracção Di Euncätzio, aquela fracção que conseguira controlar Qing, Hachirou, Ryuketsu e muitos outros...Aquela fracção nunca irá representar aquilo que eu sou. Eu sou o Duque Adrian Demetrius Von Tifon. A minha vontade pertence-me.  

- Mãe, o Karl voltou a ter um dos pesadelos acerca da vida do Kato Ryuketsu. 

- Pobrezinho! E pensar que um filho meu teria de enfrentar aquele sangue...Tanta carnificina aos doze anos! - A minha pobre Mãe gritou.  Pequenas gotas geladas começaram a escorrer-lhe do rosto frio e pálido. 

O meu irmão, Maximilian, espreitou por uma das janelas, os longos cabelos castanho-acobreados penteados com um ar infantil. Dois rabos-de-cavalo caíam, cachos encaracolados, delicados. Os olhos azuís olhavam ora para mim, ora para a minha Mãe.    

- Mãe?!  

- Não te metas!  

- Porque é que não me devo meter! Já tenho nove anos, seu palerma! 

Soltei uma risada, embora sooase um pouco diferente da minha voz actual. Nessa altura eu sofría daquele grande mal que todos os adolescentes passam.   

- Porque é que não vais brincar com as bonecas da Cecilie? - Disse eu, trocista.  

- Ora, sua bosta congelada!  

- Max, ouve o  teu irmão! - A minha Mãe ergueu a voz num tom solene. 
  
- Mãe...Eu tenho a certeza que a Senhora Roshini poderia ajudar-nos a---! 

- Não! Se nem eu própria consegui expulsar os fantasmas da minha própria cabeça, o que é que uma Kinnaree como aquela criatura podía fazer?!  

- Pai, o que é que o Pai acha se formos...

Um barulho de um roncar alto e ribombante ecoou por todo o salão de jantar.  

- É mesmo um inútil.

- Adrian! Não fales assim do teu pai.  

- Mas não é a verdade, Mãe?! Desde que ele sacrificou todos os poderes do Senhor Hurakhajam para controlar os Sussurros Di Euncätzio do Kato Hibiki, o Pai nunca mais foi o mesmo. 

- Eu sei...Mas aquilo foi um sacrifício nobre! - A minha Mãe pousou uma das mãos no meu rosto, um pequeno sorriso no rosto pálido, quase translúcido. Os longos cabelos negros roçaram contra os meus. Quem me dera ter o mesmo cabelo que a minha Mãe, aquela cascata negra, sedosa, perfumada! As sobrancelhas depiladas da Mãe ergueram-se, como se ela estivesse a olhar para o horizonte, se bem que ela poderia estar a olhar para  o Maximilian. Nunca decifrei aquele olhar gélido, cristalino. - Eu casei-me com um Humano porque sabía que da semente dele iria nascer o futuro protector do ducado de Shunamari, desde as montanhas de Itshaki até aos Deltas de Ryuketsu e da Senhora Shamanarta.  

Eu poderia considerar aquele discurso um teatro eloquente. Mas a minha Mãe não era assim. A minha Mãe sempre ressentiu o facto do Pai dela, Kensaku, desonrar a família com o comportamento promíscuo.  Ninguém faz com que a minha Mãe perca a face. 

Engoli em seco ao pensar que tipo de castigo a Mãe teria pensado para o próprio Kensaku ter saído do quarto dela com o corpo a desfazer-se em cacos.  O Kensaku podia ser forte, mas não era um feiticeiro tão poderoso como o temido Kato Ryuketsu, o antigo bobo da corte do Château Von Tifon e o principal assassino do Duque Leberecht Von Tifon. Ryuketsu poderia ter tido outro nome, mas ele decidira manter o nome do deus do Rio que o vira crescer. Se havía uma coisa que eu admirava na Mãe, era como ela nascera numa era em que dois destes homens lutavam para serem os "preferidos" do Duque Von Tifon. 

- Mãe? Posso ver o que aquela rapariga do Oeste está a fazer?  

- Claro que sim, meu querido.  



(Continua) 







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